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EU GENTE EU VENTO

Quando será o último dia de minha vida? Como será? Eu tinha essa dúvida quando eu era gente antes de virar vento. Só Deus sabe como será o extremo momento de nossa existência e graças a Deus que só Ele sabe. Costumava questionar sobre isso no tempo em que eu era homem e agora que eu virei sopro e partículas, eu não ouso mais.

 

Hoje eu sobrevoei, como vento, um local distante do interior verdejante de um grandioso país dos trópicos. Vi uma casa de fazenda. Uma construção enorme, gigantesca, um casarão, de estilo colonial: antigo, velho, descascado, decaído e estropiado. Local que eu morava quando eu era carne. Mas agora que me transbordei em ventania, sinto tudo que naquela época eu não sentia e percebo o que não percebia. Cresce o que não crescia. Calma que antes não existia. Hoje eu vejo tudo que antes, quando carcaça, eu não via.

 

Vejo que, por fora, o casarão continua rodeado por uma imensa varanda com muro de jacarandá em seus quatro cantos. Varandão repleto de cadeiras de balanço, bancos de ferro pintados de um branco corroído e redes feitas de pano emoldurado de cores diversas e desgastadas. O chão da sacada de piso corrido já está borrado de manchas escuras e já não é tão brilhante como antes. Seu telhado e de toda a construção é de telhas de barro. Faltam muitas telhas naqueles telhados perdidas nas muitas tempestades de meus vendavais.

 

A porta principal da casa é gigantesca. É um portão todo feito de madeira de jacarandá talhada e esculpida pelas mãos de meus irmãos escravos de outrora. Nele existem desenhos esculpidos que remetem a um leão dourado do lado esquerdo e a uma rosa vermelha do lado direito: o brasão da família Rosa e Leão. Os antigos proprietários do casarão onde eu vivia em servidão. Mas os desenhos talhados a mão pelos escravos já não são mais vivos como antes. Agora estão borrados e desgastados por mim que sou vento e por ele, o tempo.

 

Vejo que, por dentro, o casarão continua todo revestido de madeira ipê colonial de cor marrom claro. Há infiltrações tenebrosas que borram as pinturas e estragam a madeira já envelhecida. Lá dentro também existe um enorme salão principal, vários quartões (ou quase quarteirões?), vários banheirões e cozinhões, tudo como diziam as crianças que lá moravam, as crianças malvadas que eu servia.

 

Mas os cômodos, agora, estão vazios. Só eu, o vento, por vontade dos Deuses, passo por eles, soprando os móveis, sofás, mesas, talheres, tapetes, quadros e tudo e levando poeira e sujeira para orientar a fúria do tempo. Todas as enormes janelas, os janelões do casarão, possuem cortinas grandiosas e brancas. Estão envelhecidas e carcomidas e balançam quando eu passo e sacodem seu rico tecido outrora importado, com rendas bordadas a mão, com desenhos do brasão dos Rosa e Leão.

 

Hoje, sempre que eu quero, como vento que sou, chego em qualquer lugar. Eu vento para lá e vento para cá. Sopro no final de dia, quando as tardinhas chegam em todas as regiões ribeirinhas do interior. Bafejo quando as iluminações trazidas pelo sol, já fraquinhas, entram pelas beirinhas da porta principal do casarão vazio e se estendem jeitosinhas pelo chão de taco batido do corredor.

 

Eu vejo, trago e sinto. Vento pelos espaços daquela antiga casa dos Rosa e Leão. Não há mais pão, nem quentão, nem lampião, nem mais ninguém lá. Somente o som. Aquele zunzunzum que eu trago comigo.

 

Agora, lá no casarão dos Rosa e Leão, só existe o passado que se esvai com o natural movimento da mudança. Somente a solidão que se refaz por trás da secular paisagem ilusória da permanência. Por graça de Deus, eu posso ser esse vento que vem de longe, do Norte, e que entra pelas portas, pelas janelas trançadas, balançando as antigas cortinas rendadas, feitas por mãos escravizadas e que agora carregam suas pontas rasgadas. Por graça de Deus hoje eu perpasso pelos cômodos desertos, fazendo um zumbido suave que se escuta por todos os cantos do casarão dos Rosa e Leão.

 

Por graça de Deus hoje eu posso virar furacão, ventania ou brisa calma, diferente de quando eu era broto tolhido da servidão perene que o tempo desfez. Quisera Deus que durante a minha vida no casarão dos Rosa e Leão eu fosse gente de verdade. Hoje eu sou apenas vento e enquanto vento eu me sinto gente.

 

Quando será o último dia de minha vida? Como será? O último dia da minha vida eu lembro bem como foi. Estava chovendo. Fazia frio na senzala. Acorrentado, num cantinho miúdo e sujo, esquecido e sangrando, eu deixei de ser gente. Isso foi há muitos séculos lá no casarão dos Rosa e Leão. Naquele espaço que era para mim nada mais do que uma prisão. Agora, dono do mundo, sou apenas vento. Sou livre.

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Conto que faz parte da antologia GRAÇAS A DEUS - Editora EuEdito (Portugal) - 2017.

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