VELUDO MEU AMIGO
O vira-lata dessa história entrou na minha vida logo depois que eu me casei. Era outubro ou novembro de 2013 e uma forte chuvarada varria os arrabaldes da capital carioca. Naquela noite, depois de horas de chuva, a rua estava alagada. Era um córrego incontrolável.
Ao passar das horas um uivo seguido de choro assustou-nos eu, minha esposa e minha enteada. Era um barulho que perpassava pela porta e adentrava pelas janelas do ambiente e que foi ficando mais agudo e constante aos segundos que corriam. Achamos que era o vento, ou o menear das árvores da calçada. Mas o brado continuava aumentando. Decidimos investigar tal enigma e percebemos que o som estridente e carrancudo vinha do muro da entrada do quintal perto de onde fica o portão da garagem do carro. Pegou-se lanterna, vela, lampião. Irrompemos o epicentro do som com luz para saber do que se tratava misteriosa algazarra. Em instantes os três abelhudos estavam esmagando-se na janela e vimos um amontoado escuro preso nas grades de ferro do muro. Era uma sacola de lixo? Não! Era um homem. Por Deus! Uma criança? Muito peludo para ser!
Apreensão!
Muito atenta e esperta a pequenina de minha enteada gritou assustada: é um cachorro! Perfeito. Acetou na mosca. Havia um cão, isso mesmo, um cão, agarrado nas grades do portão lutando para não ser levado pela correnteza irrefreável da rua inundada pela da tempestade. O bicho uivava! Ele gemia e gritava! Minutos de tensão e algazarra. Até que alguém lembrou de uma corda na dispensa. Desesperado eu me prontifiquei e fui, na chuva, resgatar o pobre animal. Preparei a laço e joguei a corda. Por sorte, de primeira, lancei o bicho. Puxei, puxei e puxei. Com uma força descomunal o ser imundo e quase desfalecido passou pelo muro e caiu dentro do quintal no lugar coberto da garagem. Nessa hora não havia diferença entre a chuva, os trovões, os gritos de minha enteada e os uivos do bicho.
O assustado animal, tremendo, rosnou baixinho, chorou e balançou o rabo. A fera tinha um pelo escuro e uma mancha branca por baixo do pescoço até a ponta da barriga. Minutos se passaram até que minha esposa (que é veterinária), depois de se certificar que ele não morderia ninguém, levou toalhas velhas e começou a secar e brincar com o bichano. Eu, molhado, fiquei de longe contemplando a cena épica. E então, foi assim que o tal bicho rafeiro entrou em minha vida. No início ficou sendo conhecido como o Enchente. Depois minha esposa o nomeou como Veludo. Isso mesmo: Veludo!
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História de um Cão é o famoso poema de Luís Guimarães Júnior do final do século XIX que tem como personagem principal um cachorro chamado Veludo. Minha esposa sabia o texto poético inteiro desde criança e sempre sonhou em ter um vira-lata com nome de mesmo nome. Esse foi o momento certo. Mas por sorte do cão, o destino foi diferente do personagem do poema: não era maltratado, nem feio, nem morre no final! Fiquem tranquilos!
Quando chegou em nossa casa, o Veludo possuía todas as doenças possíveis e imaginárias de um bichano que viveu por muito tempo na rua. Com mais ou menos vinte quilos, havia verrugas por toda a sua boca, problemas no sangue, vermes monstruosos que destruíam paulatinamente suas entranhas. Era um festival de problemas. Sofria o bicho para tomar as vacinas com remédios potentes e as pílulas que tinham que ser dadas colocando a mão na goela. Era um arranca rabo. Mas Veludo, por fim, ficou bom. Graças aos Deuses e aos cuidados de minha esposa que lhe deu carinho, doçura e atenção.
Apesar de ter saído da rua, a rua não saiu do Veludo. Por mais que déssemos comida, água, banho, roupa e toalhas novas o danado do cão sempre gostava de fugir pela brecha do portão e ficava por horas fora de casa, cheirando lixo e comendo os restos de comida podre. Depois voltava correndo mostrando aquela língua grande e rosada. Mas digo para vocês, meus amigos. O que mais me incomodava em Veludo não era o fato de ele ser rueiro ou fujão. Mas sim, a presença dentro de minha jurisdição (território, residência) dos pelos que ele deixava pelo local.
Bom, o problema dessa história que começa aqui.
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A regra era uma só: ele nunca poderia adentrar ao recinto da casa, ou seja, não poderia passar pela porta que separava o quintal. No início isso deu muito certo. Veludo num canto e eu no outro. Mas com o tempo eu mesmo fui notando pelos pretos enormes pela cozinha, copa, sala, banheiro! No início achei que fosse coincidência ou que eles eram trazidos pelas correntes de vento de um ambiente arejado e com muitas janelas. Mas, para minha agonia e aflição os pelos foram só aumentando e se acumulando exageradamente. Eu me enfezei.
Das duas, uma: ou o Veludo entrava escondido sem ninguém ver, ou minha esposa deixava o bicho passar descaradamente. Vejam vocês: como descobrir se o Veludo entrava em casa (ou não) no momento de minha ausência?
No início, entretanto, isso era apenas um incomodo tolerável. Mas depois foi ficando insuportável. Dias e noites sem dormir. Não havia como saber. Eu estava no trabalho: pensava no Veludo na cozinha. Dirigia o carro: ajuizava sobre o cão no banheiro. Encontrava-me no mercado: refletia em Veludo em cima do sofá. Fazia uma caminhada pelo bairro: ponderava sobre o animal na minha cama. Apenas os pelos determinavam a sua ousadia. Brigas com minha esposa, sujeiras no chão, arranhões nos moveis, gritaria, chinelos voadores, panos devorados, roupas rasgadas. Eu não aguentava de agonia.
Então eu tive uma ideia. Eu precisava da verdade. Comprei câmeras de espionagem e instalei por toda a residência e esperei um, dois dias e depois fui ver os resultados. Como esperava: o safado do bicho entrava escondido pela fresta da porta. Vi pelos vídeos o tal Veludo com aquelas orelhas caídas a correr e pular pelos cômodos, sofá, cama, mijando nas roupas. O ódio tomou conta de mim e eu saí do quarto logo depois de ver os vídeos. Irracional, eu peguei uma faca na cozinha.
Era eu ou o Veludo.
*
Com a faca na mão eu fui até o quintal. Minha esposa tentou deter-me, mas eu tranquei a porta por fora. Ela gritava e eu caminhava lentamente até o encontro do presunçoso animal. Parecia que o mesmo destino que o poeta deu ao seu cão na ficção aconteceria com o Veludo de verdade. A morte certa.
Com fúria nos olhos eu cheguei próximo da casa do cachorro. Atrás de mim apenas o muro da residência do vizinho. Era noite e passava das onze. Veludo estava em pé em posição de ataque com os olhos esbugalhados e rosnava feroz. Nuvens se acumulavam no horizonte. A besta-fera parecia saber o que estava por acontecer. O seu destino fatídico. Trovões rasgavam os céus! Uma ventania esquisita sacolejou as roupas no varal e parecia a cena de uma batalha final. Eu e o meu inimigo. E ele estava com vontade de lutar. Então o mandei calar a boca. Veludo latiu agressivamente. Eu empunhei a faca e corri ao seu encontro. Era o fim.
Na corrida para o abate derradeiro eu encostei no batente do chão e tropecei em minhas pernas. Cai de joelhos e vi Veludo correndo em minha direção com sangue nos olhos. Ele correu e pulou por cima de mim. Eu gritei um palavrão indizível. Minha esposa berrava olhando toda a cena pela janela. De repente um segundo. Um silêncio.
A dor na perna era insuportável. Veludo tinha me mordido? Galgo maldito e salafrário! Iria me devorar. Vi vultos e luzes rodeando-me. Caído no chão eu escutei um estranho berro e depois um grito; um outro berro e um tiro; um outro tiro e mais um berro. Depois um barulho de algo pesado caindo no chão na casa do vizinho. Na hora pensei que Veludo tivesse pulado tão alto que conseguiu atravessar o muro. Mas não tive como confirmar essa minha ideia, pois a mente apagou e eu desmaiei.
Acordei com Veludo lambendo minha cara, chorando e fazendo aquele seu olhar característico que possuía fortes feições humanizadas. Minha esposa sentada ao meu lado. Em pé, na minha frente, alguns policiais. Eles me ajudaram a levantar. Em minutos eles contaram-me tudo o que aconteceu: minha perna tinha sido quebrada quando de minha queda; o Veludo pulou em direção ao assaltante que estava no muro do vizinho prestes a me atacar pelas costas com um revólver. O criminoso, que se assustou com o pulo do cão salvador, deu dois tiros, que não atingiram ninguém, e caiu do outro lado, escapando logo depois. Estava explicado.
Veludo era um herói. Ele usou sua consideração por mim, pelo fato de tê-lo tirado da rua e naquela noite me salvou a vida assim como um dia eu havia salvado a sua.
*
Hoje eu estou bem. Curei minha perna e minha implicância com o animal. A sua compaixão e lealdade curaram meu ódio e rancor e talvez fosse apenas ciúme meu ou apenas ilusão. O que eu sei é que nossos territórios estão redefinidos e ele pode entrar pelo menos até a cozinha. Depois passamos uma dessas vassouras eletrônicas que sugam pelos e pronto. Está tudo resolvido.
Outro dia eu levei meu amigão para tomar banho num petshop perto de onde moramos. Na volta tiramos uma foto e ele ainda sorriu para a câmera.
Essa é a história de Veludo. Lindo, fiel, companheiro e leal. Meu grande amigo vira-lata.
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Conto que faz parte da antologia Pet Companhia - Editora Illuminare - 2016.