O SOL RUBRO SOBRE A PONTE DO RIO OLD
Da varanda arejada de minha casa pude observar a paisagem meditativa de Jazztown Valey. O seu entardecer rubro e as margaridas que nascem nas margens amarronzadas do rio Old. As folhas secas do topo das árvores que descansam suaves em sua superfície. Nesses dias de folga voltei a ler os evangelhos! Lembrei da meninice! Lembrei de Francys!
Foi um repouso forçado deveras principiado por aquelas fisgadas agudas concentradas na junção onde os pontos foram dados. Quando Dr. Mathias chegou em meu domicílio, a quatro dias atrás, recomendou-me apenas descanso. Ele é um bom homem e tem sempre um comprimido para tudo. Falou das fofocas da cidade, falou de Daisy, insistiu sobre a maldita prótese e disse que comprou em São Paulo uma dessas novidades de hoje: um tal televisor RCA 630-TS. Não vai fazer sucesso aqui. O rádio é tudo. Prefiro o meu Tombstone Crosley.
Anotações de 19 de junho de 1951
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Hoje eu regressei a delegacia. Terno verde escuro. Careca lustrada. Barba feita. Detesto trabalho acumulado.
No final do dia tive uma surpresa desagradável. Dona Esmeralda, minha “doce” secretaria, trouxe-me um envelope. Escrito apenas: Aos Cuidados do Delegado Jimmi Fitzgerald Almeida. Dentro dele um cartaz clamava em enormes letras: NÃO PERCAM. A VOLTA DE WILLIAN FRANCYS JUNIOR A SUA CIDADE NATAL. NO CORETO. DIA 5 DE JULHO.
Anotações de 20 de junho de 1951
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Ontem, depois de 23 anos, eu voltei ao passado. Fui ao antigo pub. Terno vermelho vinho. Aparei a barba branca. Já passava das dez da noite. Aquele clima escuro e fumacento me acalmava. O bar estava repleto de figurões da cidade. Olhos assustados me cumprimentaram. Sentei-me isolado.
O som de Don't Let It Go To Your Head de Cole era um acalanto. Um velho amigo, Richardson Esteves, trouxe dois copos de cerveja.
— Jim, meu camarada. Hoje a bebida é por minha conta.
— Obrigado! Rich. — Respondi com certo desconforto.
— Como vão as coisas? — ele perguntou de forma sonsa.
— As coisas vão bem. Está tudo pronto para o show, se quer saber.
Rich ficou calado por alguns minutos. Esbugalhou os olhos: — Deveria ir falar com o Francys.
— Não vou falar com ninguém. — Ponderei rispidamente.
— Iria ser bom! Você poderia tentar voltar a tocar e...
— Não tenho um braço Rich. — Interrompi sério — Lembra? Salvei seu herói no Memorial do cemitério há vinte anos e hoje não posso voltar a tocar.
— Mas pode usar uma prótese! — ele resmungou.
— Não vou usar um plástico em meu corpo. — Falei alto e continuei — Já conversamos tanto sobre isso Rich. Eu não consigo sentir o instrumento!
Depois disso, ficamos em silêncio. O Jazz foi reinante na noite frígida. Bebemos até de madrugada. Após mais de quinze canecas eu esbravejava, em cima da mesa, bêbado, contra o velho Rich: — Hum! Eu toco mais trompete que aquele moleque safado do Francys. Hum! Manda-o vir aqui. Hum! Eu acabo com ele com um braço só. — Depois do vexame, apenas o cheiro do chão em minha boca seca e a cabeça dolorida em minha cama fria.
Anotações de 1 de julho de 1951
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O show de Francys aconteceu hoje à tarde. Ele tocou no coreto para uma multidão na Praça da Liberdade. Foi uma grande festa, sem confusões. Por Deus! Nosso Pai! O moleque do Francys aprendeu direitinho a tocar trompete: trouxe um tipo de Cool, de Bop, tocou Baker, Ellington, Coltrane, Armstrong. Moleque danado!
Naquela hora eu estava convicto que poderia falar com o Francys. Então, aproximei-me do palco. Eu queria que ele me visse ali. Pensei em acenar e talvez ele me chamasse lá em cima. Talvez me pedisse desculpa e nós pudéssemos tocar juntos. Eu até colocaria a maldita prótese. Estava tão alegre! Mas algo me despertou a atenção.
Quando adentrei a praça lotada percebi uma figura nefasta vestida com capuz sobre a cabeça, pernas estritamente arcadas e luva prateada nas mãos. Meu coração palpitou forte. Era ele. O demônio daquela noite fatal. O salafrário psicopata. Empunhei minha Garrucha Lerap 320. Andei por entre a multidão. Afoito e desesperado. Uma Miragem? Não sei. Depois de tanto tempo. Não podia ser! Corria depressa! Uma ilusão? A junção começou a doer. Pode se alguém parecido? Eu estava ofegante. Meio tonto. Depois de uma hora de busca, perdi o bandido de vista. Quando dei por mim o show já tinha acabado. Lastima! Não tem problema. Amanhã encontro o salteador. Amanhã falo com Francys.
Anotações de 5 de julho de 1951
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“Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá; e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente. Você crê nisso?” (João 11:25-26).
Às 9:00 horas o telefone de minha casa tocou. Era da delegacia e eu não acreditei na voz do outro lado da linha. Atônico fui até a pousada Repouso do Som. Talvez houvesse uma esperança? Estacionei a Rádio Patrulha GMC perto da entrada. Vi pessoas chorando. Uma ambulância já estava na porta. Eu entrei. Fui ao local do fato consumado. De longe, olhando para dentro do quarto, observei duas pernas sobrelevadas há uns 50 centímetros do chão. Com o lenço da lapela eu esfregava minha face encharcada. Com olhos emocionados percebi chocado que as pernas estavam com a mesma roupa cinza e prateada do show do dia anterior. Adentrei ao recinto e vi a cena fatídica: um corpo enforcado, dependurado com a corda ainda no pescoço. Olhei por minutos sem me mover. Fui em direção ao cadáver e peguei em sua mão ainda quente: as mãos de um gênio, de nosso herói, de meu amigo. O psicopata tinha vencido a batalha. Francys tinha sido atacado com mais de cem golpes de facadas por todo o corpo e depois pendurado pelo pescoço, por uma corda, no lustre do teto.
Deus Seja Louvado! Que Cristo tenha piedade da alma do nosso herói. Francys está morto.
Anotações de 6 de julho de 1951
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Esses últimos dias foram perturbadores. A morte de Francys Junior causou uma comoção social por toda Jazztown Valey. O velório trouxe mais de trinta mil pessoas (dentre moradores e forasteiros). Não foi fácil coordenar a segurança disso tudo. Não está sendo fácil aceitar. Um misto de revolta e depressão toma conta de mim. Por Deus! Não falei com Francys as verdades que tinha para lhe dizer! Não fui ao enterro!
Agora, enquanto escrevo estas singelas letras, lembrei de nossa juventude. O quanto tocávamos Jazz, juntos. O quanto ele era bom músico. Lembrei da noite funesta: ano de 1928. Nós dois tínhamos para lá dos 24. Éramos jovens. Eu ainda tinha o meu cabelo encaracolado na cabeça.
Naquele dia tínhamos combinado de nos encontrar no cemitério antes de irmos para mais um ensaio. Por volta das oito da noite eu saí da delegacia. Ainda era um assistente policial iniciante. Resolvi ir andando até a porta do cemitério. Observei uma movimentação no pátio anexo do Memorial dos Heróis do Jazz. Resolvi chegar perto e vi Francys ajoelhado perto da lapide de seu avô e atrás dele uma figura gigante de pernas arcadas e luvas prateadas. O meliante apontava sua carabina Garand Beretta contra ele. Iria acertar bem no meio da nuca. Por Deus! Não sei como consegui. Gestos e vultos. Não lembro direito da cena. Manchas e borrões. Corri como um guepardo das savanas ou um falcão peregrino do norte. Eu me meti na frente. Levei um tiro que estourou meu braço. Depois disso apaguei. Soube que o salteador fugiu e que Francys, covardemente, desapareceu. Fiquei quase três meses em coma. Quando acordei, o lindo sol rubro sobre o Rio Old não era mais o mesmo.
Anotações de 10 de julho de 1951
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Apesar do luto, eu resolvi voltar ao pub. Terno cinza escuro, gravata preta. Queria apenas ouvir música. Entorpecer-me. Foi quando Daisy Vaughan surgiu elegante. Vestido longo, rosa.
— Olá, delegado. — Ela, linda, sentou-se à mesa.
— Boa noite senhora Vaughan. — Eu, burocrático.
— Preciso relatar-lhe algo. Serei direta, pois há urgência. Por todo esse tempo eu guardei um segredo que tenho vergonha de contar, mas falarei. Apenas escute. Eu sei quem é o tal psicopata e...
— Como?
— Apenas escute. Esse homem que atentou contra a vida de Francys no Memorial, que tentou matá-lo fora do país várias vezes, que apareceu no show de cinco de julho, que matou Francys na pousada, que atirou em você, é o coveiro do cemitério.
— Como sabe disso?
Eu suava atônico. As mãos de Daisy tremiam.
— Ele é meu irmão de criação e sofre de uma disfunção psicótica mental grave. Trabalhava como coveiro e tinha verdadeira adoração por Francys a ponto de querer matá-lo várias vezes.
— Por que nunca disse isso Daisy?
Meu coração palpitava apertado. Ela hesitava.
— Ele é meu irmão! Droga. Tentei salvá-lo, mas depois do que ele fez na pousada eu resolvi falar com você.
— Isso é muito grave, Daisy!
— É por isso que estou pedindo sua ajuda delegado!
— Sim! Vou averiguar. — Articulei enfadonho.
Um silêncio se fez à mesa. Olhares arrastados ao som de A Kiss To Build A Dream On de Armstrong.
— Obrigado e até logo delegado.
— Mas você já vai? — arrisquei — não quer ficar e conversar. Há muito não falamos. Sabe, dia desses eu lembrei de nossos encontros naquelas tardes rubras na ponte do rio Old.
— Foram bons tempos. Mas cada um fez sua escolha. — Ela proferiu.
— Eu não fiz nenhuma escolha, Daisy. — Retruquei.
— Jim, você escolheu seu amigo Francys — ela continuou — e me deixou esperando com uma mala no meio da praça da cidade. Eu fui ridicularizada. Você esqueceu?
Nossos olhos castanhos tencionavam-se em lágrimas.
— Eu pensei que fosse dar tempo e...— eu gaguejava de emoção.
— Mas aí — ela interrompeu — aconteceu aquela tragédia toda e nós não conquistamos o mundo como queríamos.
Fiquei calado sem saber o que falar.
— Eu agradeço, mas tenho uma família para cuidar. Por favor! Prenda o meu irmão. Me ajude e serei grata! Adeus delegado.
Então ela se foi. Eu acenei, emocionado, com minha única mão.
Anotações de 15 de julho de 1951
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Hoje, no início da noite, fui averiguar sozinho a denúncia de Daisy. Deparei–me com o Memorial dos Heróis do Jazz todo iluminado. Um local bonito e agradável, a céu aberto e plano, com gramadinho verde. Há centenas de lápides feitas de cristal transparente, iluminados com cores diversas, e apontadas para o céu em formato dos instrumentos tocados pelos músicos mortos. É o paraíso dentro do Vale da Vila do Jazz.
Andei em silêncio por minutos. As luzes esverdeadas iluminavam minha face enrugada. Parei na frente da lápide do grande Bertold Willian. Avô de Francys. Local onde meu calvário começou. Pesei em ajoelhar e rezar, mas percebei de canto de olho uma movimentação suspeita. Virei e vi uma sombra cinzenta que se aproximava pela esquerda. Era apenas um homem. Não! Por Deus! Para meu espanto o sujeito tinha a perna arcada e portava uma luva prateada. Era o psicopata, bandido, salafrário que me aleijou. Ele vinha vagarosamente com sua beretta. Sem avisar ou falar alguma palavra o pilantra atirou três vezes. Covarde! Eu pulei para atrás de uma das covas. Ele atirou outras várias vezes estourando as campas cristalinas uma após uma. Filho da mãe! Vidros estilhaçavam-se para todos os lados. Eu revidei e dei dois tiros com minha garrucha. Os tiros continuaram de ambos os lados. Sua arma e a minha ficaram sem munição.
O covarde fugiu do local. Eu fui atrás dele. Saímos do cemitério correndo e ele zuniu por entre os becos desertos da cidade. Logo chegamos na ponte do rio Old. Ele me esperava com as mãos vazias e abertas no meio da passagem. As luzes parcas do lugar iluminavam a silhueta do nefasto que soltava uma fumaça esbranquiçada.
— Vai morrer assassino covarde.
— Eu vou arrancar esse seu braço como eu fiz com o outro.
Raivoso eu corri para cima dele e travamos uma luta desigual e agressiva. Ele me dominou facilmente. Tentou jogar-me da ponte e foi quando minha mão ficou livre. Nesse momento eu peguei a prótese solta que trouxe comigo escondida dentro do casaco sobretudo cinza. Disse: — já que você gosta tanto de um braço porque não fica com esse, seu maldito.
De relance joguei o modelo mecânico em cima do bandido. O braço de plástico sintético voou como um tiro e bateu como um coice certeiro no rosto do cafajeste. Ele tombou para trás e cambaleou gemendo. Caiu do muro do outro lado em direção ao rio. Bateu nas pedras. Jazia morto.
Eu me sentei no chão frio e molhado. Por minutos chorei. Depois ri. Uma fina chuva precipitou. Clamei aos céus: — Francys! Francys!
Ali, naquele momento, eu percebi que, enfim, tinha me libertado.
Anotações de 20 de julho de 1951
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Hoje comemoramos um ano do falecimento de Francys. A cidade estava linda. Uma festa jamais vista. Coloquei um novíssimo terno azul royal, raspei a barba e tirei aquele bigode detestável. Eu cantei no coreto. Fiz uma apresentação solo. Toquei Nature Boy no trompete em homenagem a Francys usando meu braço mecânico.
Ao meio-dia houve a inauguração da Igreja Multideísta. Ethan Willian estava lá. Daisy não. O fofoqueiro do Dr. Mathias falou-me, antes da missa, que ela teve uma severa briga com seu marido Marco do Monte. Um misto de euforia e esperança afloraram-me e contaminaram-me.
Amanhã eu acho que vou colher aquelas margaridas que brotam sempre por essa época em Jazztown Valey. Talvez eu convide a senhora Daisy para uma caminhada ao entardecer rubro na ponte do rio Old.
Anotações de 6 de julho de 1952
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Conto que faz parte da antologia Ponto de Criação - Andross Editora - 2016.