RELATO ANÔNIMO DE UM ESCRIVÃO DO REINO
... Então, continuamos.
E no quinto dia de jornada enfrentamos nosso detestável inimigo com coragem e abnegação. O sol queimava amarelo e ocre, depois, no crepúsculo, ficou atrás da brigada. Derrubamos o Portão de Ledstal com os machados, os canhões e as armas devastadoras que trouxemos. De longe eu olhava os nossos generais faustosos que carregavam a todos em seu encalço. Seus uniformes brilhosos, de um azul celestial, se refletiam sobre as paredes de vidro transparente e sobre as portas espelhadas que jorravam imagens e letras iluminadas e berrantes, parte da estrutura labiríntica construída pelo General Gutenberg III, nosso aziago e horrendo detrator.
Então, continuamos.
Na primeira semana estávamos ainda radiantes, convictos de que, por alguma razão, venceríamos tão desprezível opositor. Adentramos a fortaleza que antes nos parecia intransponível com algum sentimento selvagem no sangue. Cantávamos músicas alegres. Ríamos de piadas bobas. Compartilhávamos comidas e bebidas sem ao menos discutir o tempo perdido ou a quantidade gasta. Avançávamos trepidantes, corríamos pelos corredores, observando com total desconfiança, mas, ao mesmo tempo, com enorme desdém por aquele opressor. Eu vislumbrava feliz as cenas e brincava com minhas duas filhas e beijava saliente minha mulher Isadora. O reino inteiro estava unido em marcha. Era a única solução. Afinal não havia como enfrentar a peste que devastou nossa corte. Alegre e feliz, eu tocava minha flauta doce nas noites de descanso, naquelas madrugadas enquanto dormíamos fustigados pela fadiga, rodeados pelos muros dos hostis e protegidos pelas sentinelas do nosso Rei, do Altíssimo Reasontal IV, soberano de todas as terras da Cidade de Bookstal.
Então, continuamos.
Na segunda semana nosso opositor nos derrotou usando de suas artimanhas nefastas, suas práticas diabólicas que naquela época nós não conseguíamos explicar e muito menos entender. Buracos que se abriam no chão, arreias movediças invisíveis, paredes que se moviam, trepadeiras selvagens carnívoras, animais ferozes voadores que apareciam dos céus e devoravam nossas cabeças. Assim perdemos nossos mais determinados combatentes e nossos principais generais. Os corações tremularam, as pulsações convergiram num batimento desconcertado. Nosso inimigo crescia poderoso num desenvolvimento infinitesimal. Vagávamos indeléveis, perdidos perante aquelas portas entreabertas, por aqueles corredores murados e espelhados para cima e para baixo, mas, ainda assim, tínhamos esperança. Eu me angustiava por ver as batalhas e não poder participar ativamente delas. Bendito seja o Wisdomtal, o Administrador Geral, que compôs as estruturas das esquadras. Que retirou a nós, os escrivães reais, dos combates corpo a corpo.
Então, continuamos.
No primeiro mês de luta não havia mais comida para todos os combatentes. Os reservatórios, os tonéis antes entupidos de água, vinho e leite já mergulhavam em travessas ocas e secas. Os potes, as panelas antes cheias de biscoitos, amendoim, amêndoa e soja estavam agora às mínguas esperando pelo último devorador. Era a crueldade que nosso oponente nos impunha por termos desafiado tamanho poder e vastidão. Minha garganta seca, aliada ao corpanzil desenfreado e gordo, me trazia terríveis sofrimentos. Eu tentava sanar a sede dos meus familiares sem sucesso, vendo as laringes ensanguentadas de meus conterrâneos, os olhos em furacões de vermelhidão eterna, os lábios petrificados, a pele deteriorada pelo calor, o odor metálico e miserável.
Então, continuamos.
No final do segundo mês de batalha deixamos velhos e crianças para trás. Fomos obrigados a fazê-lo pelo honesto e bravo Comandante Lorestal Alborg, o único que sobrou, com a promessa de que voltaríamos. Nunca voltamos! Hoje eu me arrependo de ter partido sem os meus entes queridos que ficaram pelas estradas morrendo de fome, frio e medo. Chorei copiosamente ao afastar-me de minhas filhas e de minha amada. Chorei, mas avancei bravo. Lutei junto aos meus cúmplices mais próximos no momento em que a alucinação e a loucura levaram-nos a devorar uns aos outros, indistintamente. Matamos nossa própria gente, de nossa própria pátria, e rasgamos nossa própria carne. Já não víamos a luz do sol, o vento fresco, o azul do céu ou as estrelas da noite, tamanho era o medo que agora sentíamos de nosso algoz e daquelas paredes inomináveis, gigantes, intransponíveis, daqueles muros que nos cercavam, nos tolhiam todos os dias com imagens dementes e alienantes e cada vez cresciam mais e mais e a cada instante delirante surgiam monstruosos diante de nossos olhos.
Então, continuamos.
No final do terceiro mês, o restante daquelas mulheres e daqueles homens, dos mais fantásticos combatentes de nossa civilização, de nossa tão amada nação, de nossa Cidade de Bookstal, caíram diante da fome, da miséria, da desnutrição diária e apenas restaram três sobreviventes. Este que vos escreve, com lápis e papel numa das mãos, uma mulher idosa que trazia uma pequena estátua de um santo sem cabeça dependurada no pescoço e um soldado com seu cavalo moribundo. Perdidos, já não sabíamos voltar. Queríamos rever nossas famílias. Mas não conseguíamos escolher o caminho certo e agora não existiam mais famílias para rever. Então, ajoelhados, dignos de pena, clamamos, rastejando aos pés dos imensos paredões de vidro transparente, batendo nas portas que não mais se abriam, pedindo clemência e perdão pela ousadia de tentar vencer o temível dédalo que já se encontrava incrustado no labirinto infinito de nossa própria mente...
____________________
Conto que faz parte da antologia Reino Fantástico - Autografia Editora - 2019.