PARIS, JULHO DE 1520
— Tocai o sino! — bradou o irmão Sebastian, correndo esbaforido pelas ruas parisienses de Sainte-Geneviève. Um vento árido levantou suas vestes e fez revoar folhas secas do chão de terra batida do lugar.
O religioso, regresso da abadia do rei Clóvis, apressava-se em direção à entrada principal da igreja de Saint-Étienne-du-Mont. Seu objetivo: alcançar a torre do novo campanário onde se encontrava o moderníssimo sino da paróquia.
— Tocai o sino! — continuava Sebastian, com sua voz fina e seu corpanzil desajeitado. — Ou terei de subir e pegar-vos dormindo novamente?
No topo daquela imensa construção, dois outros clérigos, da mesma congregação, repousavam sentados, simulando não escutar o alarido. Aos risos, o alto e magro irmão Pierre ergueu-se com certa dificuldade. Andou vagaroso, ajeitou seus óculos e tocou com a ponta de suas sandálias desgastadas a careca quase calva do pequeno e franzino irmão Francisco. Depois disse, ainda bocejando:
— Toca o bendito sino, vai.
— Mas por que devo fazê-lo? — respondeu Francisco, rudemente.
— Pois irmão Sebastian está mandando — disse Pierre, calmamente.
— Nunca! — falou Francisco, cruzando os braços. — Toca tu.
— Eu não.
— Então, eu também não.
Os dois diáconos se entreolharam por alguns segundos: Francisco severo; Pierre sereno.
— Olha — disse Pierre, resolvendo acabar com o silêncio —, esse não é o momento exato para tocar o sino. Façamos isso antes do tempo certo e padre Bartolomeu nos excomunga. O homem ainda nem terminou de se arrumar para começar a missa.
— O vigário me excomunga e eu parto para Ratisbona.
— O quê? — os olhos cordiais de Pierre alongaram-se.
— Isso mesmo que você ouviu — falou Francisco, ajeitando de forma rabugenta sua túnica branca — Germânia é um refúgio aos nossos corações.
Nesse momento, uma revoada de aves vindas de bem longe, voando desde as terras ao noroeste, passou perto do campanário.
— Não fales blasfêmias — disse Pierre, trépido com os pássaros.
— Pois não sei o que tem de errado essa ideia, afinal!
— Pois não sei o que farás tu em Ratisbona, afinal!
— Ficarei lá, em clausura, com os beatos da catedral de São Pedro!
— Blasfêmias! — repetiu Pierre. — Por acaso não sabes que toda a Germânia está em guerra? Aquilo lá virou um covil de hereges sem alma. Martinho anda por lá, levando a infâmia e a desolação.
Os dois fizeram um sinal da cruz. Depois, rezaram baixinho por alguns segundos uma ladainha cristã.
— Martinho é um bom homem — resmungou Francisco, ranzinza.
— Martinho é um incrédulo — retrucou Pierre, afável.
— Por acaso Martinho disse alguma mentira? — indagou Francisco.
— Por acaso Martinho disse alguma verdade? — perguntou Pierre.
De súbito, uma forte ventania, oriunda das longínquas montanhas do norte, soprou pelas janelas frisadas do lugar. Um sussurro grave, constante e medonho perpassou por todo o prédio da torre. Sebastian, que subia com dificuldade os degraus da estreita escadaria de pedra, quase fora derrubado. Na parte de cima, os dois religiosos tiveram que segurar com força suas vestimentas que não paravam de serpentear.
— Pode ser algo sério? — indagou o irmão Pierre.
— Não é nada. Acredite — argumentou Francisco.
— Os Mouros podem ter invadido as cercanias de Paris?
— Isso seria uma bênção para a cidade.
— E se forem os Otomanos? Não se lembra de Constantinopla?
— Isso seria uma bênção para a Igreja.
De repente, um estrondo no corredor logo abaixo. Os dois noviços pararam de conversar. Seus olhos amendoados esbugalharam-se. Da abertura no chão, de onde vinha a escada de pedras, emergiu uma figura singular. Era o irmão Sebastian que finalmente chegara ao topo da torre com seus olhos azuis cristalinos arregalados e sua face rosada, fruto do esforço cometido.
— O que pensam que estão fazendo? — indagou Sebastian. — Não me ouviram? Hein? Estavam realmente dormindo? Não sabem quais boas notícias chegaram das terras de Trás-os-Montes.
— O que aconteceu por lá? — perguntou Francisco.
Então, o irmão Sebastian abriu um largo sorriso no rosto. Depois, estufou o peito. Em seguida, na frente do enorme barrigão, aproximou suas duas lisas mãos unindo seus dedos em forma de um singelo triângulo. Ademais, falou sem respirar: — Dizem que os navegantes portugueses descobriram mais terras ao ocidente. Consta que o irmão frei Henrique de Coimbra celebrou missas por lá. Padre Bartolomeu rezará outra, aqui, em homenagem às terras encontradas que serão assim abençoadas para todo o sempre. Além disso, nosso vigário até pediu a um tal de Miguel Ângelo di Lodovico para pintar um afresco em nome de nossa congregação. Oremos e que Deus proteja nossa Madre Santa Igreja.
Resignados, os três irmãos, Sebastian, Pierre e Francisco, fizeram o sinal da cruz várias vezes. Minutos depois, estavam eles, juntos, a tocar, efusivamente, o sino da majestosa torre de Saint-Étienne.
Dentro em pouco, toda a gente de Paris veio saber das notícias.
Eram os novos tempos.
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Conto que faz parte da antologia Nanquim - Andross Editora - 2015.