DE OLIVA E JASMIM
O CASO DE VICK ALAMEDA
Zumbido. Sons. Dores. Na minha frente eu notava luzes. Os olhos cerrados, a sede e a fome. Náuseas. Borrões rodeavam-me. Eu escutava ruídos. — É você Xoany? Essa é sua espaçonave?
Imagens digladiavam-se em minha memória.
*
Decorria uma noite chuvosa de outubro de 2010. Era o dia da viagem. Mochilas arrumadas. Planos feitos. Na sala, meus tios discutiam o que fazer comigo: — Não admitimos droga, sexo e bebidas! — berravam. Dentro do quarto eu, deitada na cama, conspirava. Usava um jeans desfiado e casacão folgado. Ao meu lado, minha amiga Raquele com sua pele negra, seu macacão azul e sua jaqueta de couro preta. Nós tínhamos 18 anos.
— É péssimo irmos de ônibus. — Disse Raquele.
— É a melhor opção. — Argumentei.
— Você é muito teimosa!
— Da Barra até o Alto da Boa Vista é um pulo, garota.
— Sério? — ironizou ela.
— Depois caminharemos até a Floresta da Tijuca e
— Putz! Vai acabar com tua chapinha. Sua louca.
— Bobona! — eu disse, puxando Raquele ao meu colo — e pode deixar o celular aqui. Não precisará dele em Sirius.
*
Sua sobrinha, senhor Enrico Dantas Alameda, sofre uma espécie específica de psicose. Na literatura médica nós chamamos de Apofenia. Não se assuste! São casos muito comuns de um fenômeno cognitivo de percepção de padrões em conexões aleatórias. A parir desse processo mental ela criou crenças de contatos alienígenas.
*
Raquele e eu esparramamo-nos no último acento do coletivo municipal. Um dilúvio castigava as ruas da capital fluminense.
— Sirianos! — ponderei — são eles que irão nos levar.
— Eu sei. Você já falou!
— Ei!
— O quê?
— Você está bem? — abracei o corpo magricelo de Raquele.
— Sim.
— Aquele grupo da internet é de confiança. Eles sabem fazer o contato.
— Eu sei!
— Se tiver com medo ainda pode voltar.
— Não vou deixar você partir sozinha. — Ela riu.
Fiquei em silêncio, meditando. Minutos se passaram. A maresia zurzia por nossas peles úmidas. Lá fora a orla manchava-se em luzes desfocadas. Raquele acariciava meus cabelos.
— Não é certo, Vick.
— O quê?
— Não avisar a ninguém: Melly! Luna! Gil! Seus tios!
— Quero que se explodam!
*
O que temos no caso da paciente Vicktória Alameda, é um sintoma clássico de Apofenia, chamado de Pareidolia: quando a pessoa interpreta um simples estímulo vago e aleatório como algo significativo e padronizado. Ou seja, é como se nós olhássemos para as nuvens e víssemos nelas um elefante ou um carneiro. No caso de Vicktória, ela vê luzes nos céus, ou sons no quarto dela, ou vultos na rua e acha que se referem a alienígenas, ou naves espaciais. E isso gera tendências a aceitar sugestões de viagens para outros planetas e contato extraterrestres.
*
Passava das onze da noite quando chegamos no Parque Nacional da Tijuca. Encapuzadas pulamos o muro e adentramos às trilhas escuras, indo da Estrada dos Picos ao Largo do Bom Retiro. Já estávamos a 685 metros do nível do mar. O tempo começou a melhorar. Logo, alcançamos a escadaria de pedra. Em minutos: o Pico da Tijuca.
Escutamos vozes e risos. Era o grupo da internet. Havia barracas de camping, fogueira e cobertores. Binóculos e telescópios. Uns cantavam. Outros tocavam gaita. Um clima agradável. Observávamos toda cidade. O céu limpo. Alguém trouxe uma bebida, de gosto esquisito, numa caneca de madeira. Após certo tempo me sentia zonza. Porém, um rapaz barbudo gritou: — Olhem lá no céu!
Apreensão. As estrelas mexeram-se. Eu estava entorpecida. Coração pulsante. Minha amiga Raquele me deu a mão e seus lábios finos abeiraram-se a minha boca pintada com batom preto. Uma grande claridade declinou-se sobre nós. Ventania e luzes. Parecia a nave-mãe: focalizou-nos. Nesse momento, meu corpo, forte e robusto, estava paralisado. Uma força elevou-me. Eu sentia paixão. Então tudo ficou azul. Névoa.
Uma forma humana veio em minha direção: alto, pele clara, olhos azuis. Ele exalava uma fragrância de oliva e jasmim. Eu sentia fascínio e entendia a sua telepatia. Seu nome era Xoany. Nós conversamos por horas. Ele proferiu poemas sirianos e eu sentia êxtase. Xoany disse que eu viveria feliz com Raquele em Sirius e depois cantou músicas de seu planeta. Por fim, falou que eu teria uma filha híbrida que salvaria a Terra. Xoany me tocou e eu sentia prazer. Voava na vastidão do cosmos.
Até que: explosão!
Do clarão surgiu uma criatura pequena e cinza. Riu e injetou-me uma seringa.
Eu apaguei.
*
Vicktória tomou Ayahuasca. Um alucinógeno. Depois adormeceu na floresta e entrou num estado de sono REM onde os músculos do corpo ficam paralisados. Ao acordar teve o que nós chamamos de Paralisia do Sono seguida de alucinações auditivas e visuais. Quando o cérebro dela confrontou com essa experiência contraditória, ele imediatamente formulou uma explicação. Qual seja? O contato com extraterrestres.
*
Quando abri olhos intuí onde estava: — É você Xoany? Essa é sua espaçonave?
Desencanto. Aquelas luzes, os borrões e os ruídos eram parte de um pequeno e sujo hospital público.
O médico contou-me que fui resgatada na Floresta da Tijuca após uma semana: sozinha, nua, desacordada e desfigurada. Ele relatou ainda, para meu espanto, que estive em coma por quase quatro meses. Mostrou-me o resultado do meu último exame. Por sorte, a gravidez não era de risco.
A perícia policial não encontrou, em mim, sinais de estupro. Também não localizou vestígios do grupo da internet. Nem de minha amiga Raquele.
Desolação. Chorei por semanas e por um longo tempo.
*
Hoje minha filha Rachel está perfeita e saudável. Dois anos de idade. Olhos azuis. Linda.
Meus tios ainda não vieram me visitar. Paciência.
De tudo eu cultivo a esperança. Por certo é latente a sua compleição. Oculto. Eu ainda o pressinto, todas as noites e dias, na sala, na cozinha e nos cantos da casa. No cheiro que exala da pele macia de minha pequena. Naquela fragrância forte e inesquecível de oliva e jasmim.
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Conto que faz parte da antologia OVNIS: EU QUERO ACREDITAR - Editora Illuminare - 2016.