A ÍRIS AZUL DE CLEÓPATRA
1. A CHEGADA
NOITE DE RÉVEILLON. Às oito horas em ponto o carro do governo imperial parou em frente à nossa residência. Apreensão. As sirenes silenciaram. Mãos suadas. As quatro portas do automóvel, que mais parecia um camburão, abriram e fecharam, com força, uma após a outra. Cinco homens saíram. Dois médicos sanitaristas. Três policiais federais. Canalhas.
Na sala, eu, minha esposa e minhas duas filhas nos abraçávamos constrangidos. Além de nós, apenas minha tia Elisabeth estava conosco. Ao escutar os passos daqueles homens subindo as escadas da varanda do quintal, tia Beth levantou-se da poltrona. Andou em direção à janela. Disse:
— Eles chegaram. Essa é a hora de vocês, finalmente, libertarem-se.
Sua fascinação diante do inevitável terror que iria nos acometer naquela noite era inacreditável. Covardes. Minha liberdade jazia na Taurus pendurada no coldre dentro de meu casaco. Olhos petrificados.
Tia Beth abriu a porta.
***
— Senhor presidente Hyolando Mello.
— Pois não!
— Aqui é da mídia Continental, TVC, canal 5467. Eu gostaria que o senhor tecesse algum comentário sobre esses primeiros seis meses da lei 13.287/001.
— Bom, primeiramente eu quero agradecer a presença de todos os senhores e senhoras jornalistas e convidados nessa grande e importante coletiva. Sabemos que não se trata apenas de uma simples entrevista, mas de uma grande festa para comemoramos essa nova etapa de combate contra as lamúrias de nossa monumental contrafação. Porém, antes de continuar, vou responder a sua pergunta, meu rapaz. Todos sabem que desde a nossa vitória esmagadora nas urnas, há vinte anos, que não passávamos por uma crise tão alarmante em todas as esferas de nossa querida pátria. Cansado de tanta desordem foi que criei essa nova lei. Ela trará a liberdade para nossos filhos e filhas em um mundo de paz e harmonia para todo o sempre.
— Senhor presidente, aqui é Abelardo Brandão da Rede Protesto. O senhor poderia esclarecer melhor o artigo 225 dessa lei que diz sobre a obrigatoriedade da colocação, nas pessoas, da microcápsula eletrônica contendo a vacina libertadora. Isso não seria uma transgressão aos diretos inalienáveis do homem? Senhor presidente!
— Próxima pergunta. Por favor!
2. O RESGATE
NA MINHA MÃO ESQUERDA eu segurava a pistola semiautomática. Apontava-a, trêmulo, para os médicos. Nunca tinha dado um mísero tiro. Mas comprei aquela arma para esse momento que há meses se aproximava.
— Não cheguem perto de minha família — gritei.
— Senhor Silva — falou um dos sanitaristas de jaleco branco —, viemos apenas fazer nosso trabalho. Não gostaríamos de usar a brutalidade. Abaixe a sua arma ou teremos que acionar a força policial.
— Vocês não vão inserir essa maldita coisa nelas — berrei, enquanto empurrava minha esposa e as crianças para o porão. A porta fechou-se atrás de nós. Passei o trinco. Desci os degraus correndo. Escorreguei. A pistola caiu pela escada.
— Não vou deixar que eles toquem nas meninas — disse, emocionado.
— Não poderemos fugir deles. O seu coração pode não aguentar.
— Que se dane o coração, Carla. Deve haver uma forma. Eu sei que…
Algo interrompeu minha fala. Senti uma forte dor de cabeça seguida de tontura. Vi manchas turvas e borrões desbotados. Então meu corpo, paralisado, foi ao chão.
Quando acordei, uma hora depois, já estava diante do imperador César.
3. A MICROCÁPSULA
SENHOR PRESIDENTE, essa microcápsula faz algum mal ao corpo?
— Não! De modo algum. Veja. É algo totalmente rápido e inofensivo. Essa microcápsula é um simples circuito eletrônico envolto em um vidro cirúrgico. Um fantástico biochip que, em segundos, descarrega uma vacina que atinge diretamente as sinapses neuronais do córtex pré-frontal do cérebro humano. Ali, a nossa vacina, então, inibi permanentemente as ações relacionadas à impulsividade, a agressividade e a inadequação social dos indivíduos. Como consequência, as inclinações ao ato de se corromper, por qualquer motivo, são anuladas, assim como, os impulsos ao roubo, a contravenção, o assassinato etc. Após uma semana, o material plástico biodegradável da capsula é assimilado pelo organismo humano.
— Senhor presidente, fale-nos dos casos de uso da força policial. Há relatos de sumiços e espancamentos e…
— Mentiras! Puras mentiras! Devo lembrá-los de que esse é um procedimento padrão, obrigatório, sem dúvida, mas totalmente pacífico. Não há qualquer abuso por parte dos médicos sanitaristas e dos policiais que os acompanham.
— Próxima pergunta. Por favor!
4. DIANTE DE CÉSAR
ABRI MEUS OLHOS. Observei atento. Estava deitado numa pequena maca. Local com pouca iluminação. Um intenso cheiro de cigarro. Uma sombra humana, que mais parecia um espectro fumacento, mexia-se sentado à minha frente.
— Onde estou? — perguntei.
— Fique calmo, amigo — falou a tal sombra. Voz calma e doce.
— Quem é você?
— Eu me chamo César e essa é…
— César de quê?
— Apenas César — disse o espectro —, ou imperador, como alguns me chamam.
Eu tentei levantar-me. Incontrolado, não obtive sucesso. Correntes enferrujadas prendiam minhas mãos e meus pés. Aos gritos tentava soltar-me: — O que fizeram com minhas filhas? Imundos! Essa maldita vacina nunca vai dar certo.
Então a voz doce pronunciou-se: — Apague-o.
***
DESPERTEI DUAS HORAS MAIS TARDE. Ainda continuava deitado no mesmo lugar. A voz doce e calma do dito César discorria ao meu ouvido:
— Silva! Acorda!
— Como sabe meu nome? — sentei-me na maca.
— Eu sei tudo sobre você — disse César. — Sei que se chama Eloy Silva. É professor de Ciências. Desempregado. Mas posso garantir que não sou do governo.
— Mentira! Seu hipócrita. Só o governo possui tais informações.
— Acredita mesmo nisso?
— Não sei.
— Pois bem — afirmou o imperador. — Veja! Você está sem corrente agora. Não precisa gritar, nem espernear. Mas há uma arma apontada para você com um dardo tranquilizante para cavalo. Eu ponho você para dormir de novo, caso tente atacar-me.
Refleti por alguns segundos. Então argumentei:
— Não vou atacá-lo. Já passei dos 50, moço. Meu marca-passo não me deixaria ir muito longe.
— Pois bem — repetiu César. — Acendam a luz.
Grandes holofotes iluminaram o ambiente. Um pequeno quarto surgiu diante de meus olhos. Paredes brancas e sujas. Um sujeito gordo, careca, com barbas enormes e pretas ria de uma forma jovial. Era César. Atrás dele, pessoas fortemente armadas.
— Bom, como pode ver — falou César, enquanto me ajudava a levantar da maca —, nós somos um grupo que luta pela liberdade dos indivíduos nessa sociedade que vivemos. Aquela ali, com a íris azul no cabelo, segurando a carabina com o dardo, é minha companheira Cléo. Diminutivo de Cleópatra. O magrelo lá no canto é Marco Antônio, meu assistente. Nomes falsos para uma sociedade torpe.
César continuou sua explanação por alguns minutos. Saímos do quarto. Passamos por um imenso corredor. Todo o prédio possuía uma arquitetura antiga com paredes manchadas de fungo, musgo e infiltrações. Porém, rodeada pela velha mobilha, perpassavam miríades de máquinas e instrumentos modernos, computadores de última geração, dispositivos eletrônicos e gente, muita gente trabalhando. Por fim, chegamos num grande ambiente oval com uma mesa retangular no meio. Sentamo-nos ao seu redor.
— O que é esse prédio? — perguntei.
— Um local não governamental. Mas isso não importa agora. Concentre-se no fato de que esse governo ditatorial cometeu mais aberração contra os seus direitos e de todo o cidadão. Falo da legislação 13.287/001. No seu artigo 225, essa lei permite que indivíduos fortemente armados entrem nas casas das famílias — como entraram na sua — e coloquem um dispositivo biológico na testa de cada um. Essa tal cápsula possui uma substância inibidora de nossas capacidades de escolher nosso destino, de se posicionar, de se corromper diante de situações, digamos, duvidosas…
— Eu sei. Foi o que aconteceu com minha família.
— Exato! — César acendeu seu cigarro. — Mas nós resgatamos você antes. Só acho que exageramos na carga de eletrochoque que fez você desmaiar.
— Como sabiam dos meus pensamentos?
— Já estávamos monitorando você, suas conversas e…
— Como assim, monitorando? — interrompi.
O imperador pareceu não se importar.
— Nós observamos todas as pessoas. Usamos o sistema de vigilância e controle do governo. Aquela singela câmera que tens em casa. Lembra? Escolhemos as pessoas que são contrárias à ordem burocrática Melloista. —
Ele tragou o fumo lentamente.
— E minha família? — perguntei.
César fez fumaças redondas com a boca. Riu. Falou em seguida:
— Estão bem. Só que agora possuem os biochips do governo em suas testas. Por enquanto, ainda desconhecem o seu paradeiro. — César chegou para frente e encarou-me. — Eloy, você precisa entender que não se trata de uma luta a favor do crime. Mas sim pela defesa do nosso direito de escolher se queremos ou não fazer o certo ou o errado.
— Eu sou contra essa lei e essa vacina — falei.
— Eu sei — César sorriu —, e é por isso que está aqui.
— O que querem comigo?
— Queremos te dar o antídoto.
5. OS BENEFÍCIOS DA VACINA
SENHOR PRESIDENTE, quais estão sendo os reais benefícios de nova vacina?
— Claro. Vejam! Os benefícios dessa nova tecnologia são imensos. Principalmente com relação aos aspectos do comportamento social. Nossos técnicos, especialista em neurociência, observaram, através das câmeras domésticas, que as famílias que estão usufruindo de nossa tecnologia inovadora tiveram mudanças totais nas suas posturas morais e éticas. Assim, as brigas entre familiares, entre amigos, as desavenças, os interesses mesquinhos, a inveja e as ambições foram finalmente sanados. Por conseguinte, como podem ver nesse gráfico que temos aqui ao lado, os índices de trapaças, estelionatos, roubos, fraudes, subornos, latrocínios, assassinatos caíram vertiginosamente. Nossa formula é um sucesso.
— Mas, senhor presidente, as pessoas assim não iriam mais reclamar de suas situações financeiras e econômicas. Isso não seria cômodo para o governo? Senhor!
— Próxima pergunta. Por favor!
6. NO REINO DE CÉSAR
EM MEIA HORA EU JÁ ESTAVA deitado na mesa de operações. Vi tesouras, seringas e bisturis. Notei pinças, gazes e fios de costura. Observei pessoas, que me rodeavam, vestidas com aventais cirúrgicos. Perguntei:
— Vocês vão colocar alguma coisa no meu corpo? Não consegui resposta. Ou, sim! Obtive a resposta.
— Eloy. Acalme-se — disse uma voz grossa, robusta. Era Cléo. Suas mãos carnudas seguravam meu braço, com força. Seu perfume, que exalava da íris azul, disseminava a beleza de sua face nada angelical. — Não há com que se preocupar. Esse dispositivo que eles programarão em seu corpo neutralizará os efeitos do biochip do governo. Você ficará livre para escolher seu destino.
Abrandei-me diante de seu aroma tenaz.
— Ela brilha? — apontei para a íris azul.
— Sim. Ela é feita de um raro material da natureza como nossas almas quando nascem — Cléo sorriu majestosa. Suas mãos acarinhavam meu rosto.
Olhares receosos descobriram-se por alguns segundos.
— Quem garante que vocês não controlarão minhas escolhas?
— Confie no que estou falando — ela sussurrou. — Você já fez sua escolha.
Uma fina agulha adentrou em meu braço. A obscuridade, mais uma vez, apunhalou-me.
* * *
UMA HORA DEPOIS, encontrava-me numa enfermaria com centenas de leitos vazios. Meu cabelo, antes liso, curto e grisalho não existia mais. Rasparam-lhes. Apenas um fino avental cobria-me o corpo. Nem cordas, nem correntes prendiam-me. Então, eu resolvi levantar, apesar da tontura aparente. Andei em direção a porta de saída. No corredor fui abordado por uma voz conhecida:
— Meu caro mestre Eloy Silva — César vinha sorridente.
— Vejo que já está melhor.
— Não há nenhuma incisão no meu corpo. Como colocaram o mecanismo?
— O mecanismo é líquido — explicou ele. — Entrou pela sua corrente sanguínea. Só houve um pequeno problema. Seu marca-passo rejeitou o líquido original. Tivemos que ajustá-lo às reações químicas do antídoto. Foi feita uma modificação na fórmula e só saberemos o resultado quando testarmos sua moral.
César puxou-me pelo braço. Fomos até o elevador. Lá ele me entregou uma roupa social: smoking, laço, botoeira, sapatos pretos de verniz. Com certo esforço, dentro do elevador parado, consegui vestir-me. Quando fiquei pronto, César apertou o botão n° 89. Subimos. Em seguida, ele disse: — O tamanho dessa roupa coube bem nesse seu corpo magricelo. Vamos lá. Vamos aproveitar esse momento. Afinal não é todo mundo que aguenta fiel, por vinte anos, um casamento de aparências com a belíssima modelo Carla Bruna. Por isso, eu quero que conheça um pessoal bem bacana.
A porta do elevador abriu. Uma explosão de sons e brilhos. Deparei-me com um imenso salão. Teto rebaixado. Chão de porcelanato preto. Paredes azulejadas permeadas por imensos vitrais transparentes. Lá fora, pela cobertura, via-se uma cidade explodir. Dentro do salão, um piscar das luzes coloridas, de fumaças, confetes e serpentinas. Batidas eletrônicas dos mais variados estilos. Mesas recheadas de frios circundavam recinto. Um barman freestyle enlouquecido preparava os drinks. Garçons equilibravam-se, dentre a multidão, servindo bandejas recheadas. Dezenas de pessoas dançavam tresloucadas. Algumas conversavam. Umas já se beijavam. Outras dormiam nos imensos sofás. Um clima de libertinagem tomava conta do lugar.
— O que todas essas pessoas fazem aqui? — perguntei.
— Elas vivem aqui.
— Vivem?
— Isso mesmo! — disse César. — Elas residem lá embaixo no subsolo. Mas hoje estão pelas coberturas. Aqui nós temos todo o tipo de negociata e de gente: corrompidos, criminosos, assassinos, traidores. Mas também gente honesta e pacífica. O que une todos eles? Eu respondo: a crença na liberdade. Eles estão todos livres. As cápsulas do governo não funcionam neles. Somos uma grande comunidade que agora você faz parte. Não é uma beleza! Bom, deixarei você aqui por algumas horas. Tenho que subir e resolver alguns problemas. Já passamos da meia noite. Divirta-se, meu caro Eloy. Afinal, hoje é o início de um novo ano. Feliz 2050!
Não tive tempo de responder. César saiu rápido com seus seguranças.
Sozinho, eu andei pelo ambiente festivo. Tomei algumas doses de Vodka. Ademais uma garrafa de Bacardi 151 misturada com alguma droga pesada. Em tempo, ruídos e gracejos perpassavam pela minha mente confusa. Fogos de artifício zuniam em desenhos bizarros através das imensas janelas do local.
Ao fundo, percebi de relance, no reflexo da lua no céu, o fulgor de uma íris azul flamejante de uma jovem. Era Cléo: terninho preto, blusa azul. Vestido abaixo do joelho. Salto alto. Desajeitada. Linda. A moça riu com seu jeito bruto. Caminhou para um dos quartos. Apenas segui o cheiro daquela flor.
Lantejoulas, serpentinas e luzes multicoloridas entranhavam-se pelos poros de nossas grossas epidermes. Meus olhos, porém, percorriam as belas curvas de Cléo que ascendia pelas paredes de meu corpo como uma gata com suas presas nada inofensivas.
No fim, eu adormeci. Acordei sozinho, assustado e nu numa imensa cama. Vesti-me e corri para o salão. A festa ainda rolava solta. A música alta. As pessoas dançando freneticamente. Num dos cantos do salão estava o imperador e seus seguranças. Cléo não estava lá. Fui em direção ao grupo.
— Pronto para ir embora? — falou César.
— Como assim? — perguntei. — Pensei que eu fizesse parte da comunidade. Pensei que vocês fossem trazer minha família. Minhas filhas. Resgatá-los e…
— Não seja cínico. Você nunca se importou com sua família. Não é mesmo?
Eloy. Aquelas meninas nem são suas filhas de verdade…
Nesse momento eu tive vontade de socá-lo. Mas pensei em Cléo.
— Não faremos nada disso! — continuou César, ríspido. — Há pessoas da nossa comunidade que vivem lá foram também. Você será uma delas. O governo colocará o biochip em sua testa, mas ele não vai funcionar. E você viverá fingindo.
— Quem garante? Vocês não mudaram o meu antídoto e sua fórmula?
— Eu garanto! Faça um teste quando estiver lá fora. Roube uma flor.
— Não sei se concordo com isso — falei sem rodeios.
— Agora você não pode discordar de nada, meu amigo. Apague-o.
— Não…
7. AS REJEIÇÕES
SENHOR PRESIDENTE, dizem que há contraindicações da vacina para as pessoas que sofrem do coração. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
— Sem dúvida que em alguns casos há algum tipo de rejeição. Mas nossos neurocientistas estão atuantes e monitorando todas as dificuldades. Não há nenhuma relação da vacina com problemas do coração. Isso são besteiras. O que temos que nos concentrar é no aspecto social, no caráter do indivíduo, no senso ético, na anulação da sociopatia e no fim dos transtornos de personalidade antissocial. Essa cápsula redentora, meus caros, será responsável por acabar com todos os distúrbios causados por falhas cerebrais desde a infância, por falhas do desenvolvimento cerebral em áreas frontais e até por defeitos nos limites de nossa memória. É nisso que temos que nos concentrar…
— Mas senhor, há relatos de rejeição para quem possui marca-passo e…
— Próxima pergunta. Por favor!
8. A VOLTA PARA CASA
NÃO LEMBRO QUANDO e nem como voltei para casa. Nem como fui recebido por minha família. Muito menos como reencontrei minha pistola. Mas lembro da noite em que os sanitaristas do governo voltaram. Eu, com a minha Taurus em punho, disse:
— Não cheguem mais perto. Ou eu atiro.
— Senhor Silva! — falou o médico. — Não puxe o gatilho!
— Vocês não vão inserir essa cápsula em minha testa — berrei. — Carla, leve as meninas para o nosso carro.
Minha esposa, no entanto, hesitou. Foi impedida por tia Beth. Olhei para elas.
— Apague-o! — gritou um dos policiais.
Fui acertado com um tiro elétrico certeiro no queixo. Apaguei por uma hora. Tempo necessário para que programassem o biochip e a vacina.
9. A POLÍTICOCIÊNCIA
— SENHOR PRESIDENTE, há indícios de alguns políticos do alto escalão do governo que interferem por interesses particulares nas atividades científicas! Qual sua opinião?
— Eu sempre fui um entusiasta da democracia e da ciência. Nesses meus vinte anos de governo, eu sempre apoiei e incentivei as pesquisas para melhorar a base científica e técnica de nossa sociedade. Por isso hoje temos essa nova modalidade de ensino social e cultural que é a políticociência. Essa fantástica união dos esforços dos políticos em prol das inovações científicas. Temos o dever de intervir militarmente sempre que possível para frear iniciativas ineficazes e avançar para o bem dos cidadãos. Próxima pergunta. Por favor!
— Senhor! Há, enfim, alguma possibilidade de burlar a vacina anticorrupção?
— Não.
— Senhor presidente…
— Agradeço a todos os presentes, jornalistas e repórteres, por essa entrevista coletiva online por teleconferência. Vamos juntos com Hyolando Mello! Até logo!
— Senhor presidente…
10. EM BUSCA DA ÍRIS AZUL
HOJE EU ACORDEI BEM. Olhei-me no espelho do banheiro. Percebi uma pequena protuberância em minha testa. O dispositivo de anticorrupção estava lá. Mas não tive efeitos colaterais: nem choque traumático, nem disfunção mecânica, febre. O biochip do governo realmente funcionava? Só havia uma forma de saber.
Terminei o banho. Fui comprar o pão. Voltei e sentei à mesa da cozinha com minha família. Agora, aqui, ao beber o café, tenho certeza do sucesso do antídoto de César. Como sei disso? Apenas observo, em silêncio, a pequena flor que descansa na palma de minha mão. Uma linda íris azul furtada da venda do seu José, quando retornei da padaria. Decerto, ainda posso escolher. Eu escolho ir atrás dela. Eu escolho Cléo. Eu escolho a íris azul de Cleópatra.
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Conto que faz parte da antologia Deitado em Berço Esplêndido - AGA - 2015.