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GAROTA METAL PRATEADO

Choveu como há muito não chovia nesse mundo. Como se alguém estivesse chorando nos céus. Ou rindo de alegria. A verdade é que hoje eu conheci, quando caminhava, à tarde, numa praça aqui perto de casa, uma moça chamada Madalena. Ela tinha cabelos longos acinzentados. Possuía partes metálicas em seu corpo magricelo. Transplantes de um órgão mecânico? Não sei, mas isso não importa. Eu acredito que essa minha incompreensão seja mais uma resistência boba de reconhecer que algo me tocou naquela garota metal prateado.

 

*

Madalena, Vicentina e Pedrinho corriam pelas ruas da cidade. Seus reflexos eram um zoom borrado de cinza e azul, de rosa e lilás que perpassava pelos fanais lastrados e espelhados. Um torpor sem fim. Entre os muitos becos, pulverizados por prédios poderosos, os três fugitivos amiudavam-se. Eles usavam suas mochilas com propulsores a jato e voavam. Pulavam mais alto que os viadutos que serpenteavam arranha-céus com cúpulas de cristal. Homens fortemente armados marchavam ao seu encalço, apoiados por uma horda de cidadãos enfurecidos. Não fizemos nada, pensavam os três. 

 

Criminosos! Assassinos! — uivavam os radicais. 

 

A tríade fugaz continuava em seu tormento. Seus corpos, revestidos com mantas pretas, mesclavam uma tecnologia jaz esquecida, mas ainda eficaz. Entravam nos prédios, saiam pelas janelas, pulavam pelos telhados. Todos viam e ninguém se importava. Eles se esforçavam para se adaptar as sinuosas curvas daquela cidade tufão. Do lado deles zuniam carros, motos, trens e coletivos. Asfalto barulhento. Ruas mudas. Logo, já estavam rastejando pelos canais submersos e por fim, então, pararam na sacada de uma antiga casa de festas iluminada por um boneco colorido. Os três sentaram, respiraram e fecharam seus olhos. 

 

*

 

Hoje eu e Lena nos amamos. Entramos de forma sorrateira no estabelecimento. Um amigo de Lena nos ajudou e conseguimos usar a cobertura da suíte presidencial, de graça. A intensidade do proibido e o medo atiçava nossa libido. Além disso, o risco capital envolveu nossa primeira noite e concúbito atingiu o seu clímax quando nossos dois corpos satisfizeram o seu prazer através de um misto de movimentos simultâneos, coordenados, violentos e inebriantes. Gozo e sangue. Suor e lágrimas.  Nesse momento a iluminação do quarto, antes fissuradas com luzes tremulas vindas das lâmpadas de led esverdeado, que se moviam seguindo o ritmo do calor e da transa, parou de se mexer. Foi quando a janela se abriu de forma automática e as paredes se recolheram ao chão: uma explosão de astros e estrelas que recobriu nossas peles desnudadas. Do último andar do mais alto e moderno prédio/motel do centro da cidade, contemplávamos as constelações mais brilhantes da galáxia que enxergavam nossas respirações ofegantes, nossa falta de ar e nosso coração pulsante. 

 

Eu amo essa garota metal prateado.

 

*

Uma faísca perpassou pela face rosada de Pedrinho. Susto. Apreensão. Depois uma explosão. Vicentina, forte e musculosa, jogou o filho para o canto, mas não consegui agarrar Madalena que voou para longe no telhado, caindo logo depois. Assustados os três vultos tentaram recobrar os sentidos. 
 

Uma gosma espumosa jorrava pela boca de Madalena. Algo tinha a atingido. Com certeza era um tiro. A moça tentou olhar onde estava o restante de sua família. Eles estavam do outro lado da sacada tentado se levantar. Madalena agachada foi até perto deles enquanto tateava seu peito para sentir as batidas de seu coração. Mas onde estava seu braço esquerdo? Tinha sido estilhaçado por outra rajada de balas. 
 

Alguns minutos e os três estavam juntos novamente. Usaram o jetpack para alcançar o terraço de um prédio empresarial. Lá de cima, com binóculos eletrônicos, viram uma nova rota de fuga no asfalto uns 300 metros de onde estavam. Lá no chão havia um buraco aberto de entrada de um subterrâneo. Era a rota para uma nova vida. Eles se entreolharam. Deram-se as mãos. Pularam. 
 

Vento era forte e frio. Descida em intensa velocidade. Quando estavam perto dos 200 metros do bueiro uma miríade de pequenos rastros de luz se aproximou daqueles corpos em queda planejada e uniforme. Era o borrão trazido pela velocidade! 50 metros e os rastros de luz se transformaram em minúsculos fios de aço superfinos. 10 metros e era o início do esgoto! 
 

Não! Não era. 
 

De súbito, um repuxão e um refluxo fizeram com que os três fugitivos rodopiassem sobre seus próprios eixos e seus pés encontraram-se com suas cabeças. Os fios de aço se juntaram, se fixaram e criaram um tipo raro e poderoso de rede eletrificada que os rodeou. Foi difícil perceber. Eles estavam agora unidos, como uma única massa informe, por uma força quase invisível, dentro de uma teia, de uma cerca elétrica do grupo dos perseguidores. Vicentina, Madalena e Pedrinho caíram no chão estatelados. Foram capturados.


*

Acordamos hoje e resolvemos tomar café juntos na cama. Manhã de domingo nublada e fria. Pedrinho trouxe os talheres, Lena os pedaços de pão torrado e eu o café e o leite quentinho. Comemos, rimos, fizemos cócegas uns nos outros e nos divertimos por toda a manhã e depois, por fim, cochilamos juntos e acordamos quase ao meio-dia com o barulho dos vizinhos. Lena fica irritada. Pedrinho não liga. Mas isso tudo me incomoda um pouco. O apartamento é minúsculo, pois nosso quartinho fica bem nos fundos de um pobre edifico no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. Não é um local ruim. Meu ordenado de professora e o dela de diarista não nos permite algo melhor. Mas não importa! Foi isso que escolhemos e enquanto estivermos unidos nada nos atrapalhará. Apesar de caquético, nojento e entulhado de jogatina e drogas, esse imóvel nos traz a melhor recordação de nossas vidas: foi nele que há exatos treze anos encontramos nosso pequeno ainda bebê num cesto perto de nossa porta.

 

*

Mãos musculosas carregavam um embrulho com um pacote dentro. Homens e mulheres gritavam palavras de ordem e gírias grupais. Explodiam bombas e rojões. A turba adentrou em um beco de uma rua sem saída arrastando a encomenda pelo chão. Deixavam para atrás um rastro de sangue e gosma verde. Um muro alto e sujo separava o terreno baldio das imensas edificações atrás dele. Já era quase meio-dia quando eles, os radicais, abriram o plástico. De dentro dele emergiu Madalena, solitária, nua, pintada de cores diversas, suja e ensanguentada. 
 

Uma multidão se aglomerou na entrada do beco. Com olhares incultos, escutaram calados os perseguidores proferirem o artigo um da Lei da Segurança da Espécie: é crime qualquer tipo de coito entre humanos do mesmo sexo. Não passou nem um minuto entre palmas e assobios até que saiu a sentença: Madalena seria a primeira dos três a ser fuzilada. 
 

Gritos! Urras! 
 

A moça indefesa cuspia um sangue esverdeado e amarelo. Ela tentava argumentar, com dificuldade, que naquele ano em que eles estavam, em todas as outras regiões do planeta, essa questão da escolha sexual e da liberdade de constituição familiar já estavam superadas.
 

O sol quente do meio-dia torrava o chão seco. 
 

Os perseguidores, que negaram qualquer outra argumentativa, carregaram, destravaram e prepararam suas armas apontando-as para a jovem encostada no muro. Madalena berrou e quis saber como estava sua família. Alguém gritou que os outros dois já estavam mortos! Todos riram. 
 

Uma fumaça precipitou a execução. Um estrondo sacudiu o lugar. 
 

Madalena tremeu. 
 

Fechou os olhos. 

 

*


Hoje eu chorei de emoção quando vi Lena entrar no velho templo vazio, subterrâneo e clandestino, em que nos casamos. Ela andava como um ser etéreo perpassando a poeira através das luzes das velas artificiais dos candelabros eletrônicos e do reflexo dos lustres imantados no teto repleto de infiltrações escuras. A marcha nupcial tocou através de uma tela de LCD quebrada e um letreiro de neon lilás escrito “O Iluminado nos Salvará” brilhava com várias letras apagadas na parede acima do pequeno púlpito. Madalena caminhava com o seu vestido comprido todo azul-claro e seus cabelos longos acinzentados e suas partes metálicas prateadas brilhavam lustradas. Ao seu lado, Pedrinho com sua careca avantajada, de terninho amarelo, trazia as alianças e as flores. Eu, de vestido branco e cabelos curtos amarelos e encaracolados, beijei Lena no rosto e segurei sua mão. Pedrinho ficou na nossa frente. O velho profeta-sacerdote, de cima da oratória flutuante, proferiu suas bênçãos e concretizou o casamento. Lembro da voz dele, rouca e suave, conclamando: — na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, o que Deus uniu, o homem não separa e que assim seja! Amém

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Conto que faz parte da antologia Contos da Família de Cada Um - Editora Illuminare - 2017.

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