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NA GANGORRA DAS EXISTÊNCIAS

Na minha primeira vida eu fui rocha. Mas não uma rocha qualquer, parada, imóvel ou estática. Não fui pedra cristalina, força bruta, intocável, como um legítimo e faustoso diamante vermelho. Mas me satisfiz como rocha mais comum, basáltica, eruptiva, de coloração escura, de grande dureza e resistência. Movimentava-me de tempos em tempos, com a ajuda de terremotos, maremotos e furacões e rolava de barrancos, de precipícios, de lugares altos. Destruí, com meu peso, muitas casas encravadas nas encostas das montanhas, muitos vilarejos existentes nos sopés dos morros. Protegi muitas pessoas e muitos bichos da chuva e da tempestade. Aliviei o sofrimento nas épocas das avalanches. Rolei, rolei e rolei até me espatifar no chão e virar areia pequenininha que voava com o vento e com a erosão. Vivi milhares de anos. Mas meu principal inimigo era a lava da torrente vulcânica que por muitas vezes eu lutei com coragem e bravura. Porém um dia, no final, a lava me venceu e me derreteu.

 

Como eu queria continuar a viver rocha! 

 

Na minha segunda vida eu fui vegetal. Mas não qualquer vegetal de tamanho minúsculo, feio ou raquítico. Eu era uma gigantesca planta plumosa. Um daquelas enormes, robustas e pomposas. Ficava solitária no alto de uma montanha esverdeada e era a rainha da natureza. Minhas raízes espalhavam-se por quilômetros abaixo da terra. Minhas folhas, longas e grossas, balançavam tresloucadas durante as ventanias, num ritmo alucinante, numa dança maluca, num pacto de amor profundo entre as moléculas de ar e as minhas paredes celulares. Minhas flores, respeitavam todas as cores e iluminavam os dias e as noites. Eram coloridas de um misto de verde e lilás. Meus frutos, saborosos apenas para os animais, causavam doenças mortais para os homens que ousassem me desrespeitar e come-las. Meus galhos, términos do meu caule, sustentavam espinhos finos e pontiagudos que, igualmente deletérios, fustigavam a todos que me queriam derrubar. Zurzi aqueles muitos que tentavam comer meus frutos indistintamente, ou subir em meu corpo feito de madeira de sândalo. Vivi centenas de anos. Mas, um dia, um maldito trator enferrujado passou por cima de mim e me esmagou.

 

Como eu queria continuar a viver planta!  

 

Na minha terceira vida eu fui bicho. Mas dessa vez, por algum motivo, eu não fui tão grande, belicoso ou feroz. Nasci sutil, corpo semiesférico, cabeça pequena, seis patas curtas, duas antenas. Tinha asas membranosas, com carapaças quitinosas, estilosas e bem desenvolvidas, coloridas, vermelhas com pontinhos pretos. Era um inseto coleóptero da família Coccinellidae. Tinha lá meus cinco centímetros. Com o tempo descobri que era um tipo de besouro e que as pessoas me chamavam carinhosamente de Joaninha. Vivi quase 150 dias, voando pelas paredes das casas, pelos matos ciliares de rios caudalosos, observada por casais apaixonados que suspiravam juntos ao me ver caminhando lentamente pela superfície das pontas das rosas híbridas em jardins iluminados. Corria de meus predadores terríveis e maus. Zunia de sapatos indelicados e desatentos. Mas acabei sendo pego por um inseticida agourento. 

 

Como eu queria continuar viver bicho!

 

Na minha quarta vida eu fui ser humano. Nasci Maria Aparecida. Um milagre! Com um ano de idade mordi minha mãe. Aos dois anos, mamei com dificuldades. Aos três, andei e cai inúmeras vezes. Aos quatro, quebrei o dedo da mão. Aos cinco tive pneumonia, diarreia, anemia, desnutrição. Aos seis, falei sem parar: aprendi vários palavrões. Aos sete, roubei uma bicicleta de um amigo. Peguei no pênis do meu primo. Aos oito, já gostava de beijar. Quebrei o braço brigando na rua. Aos nove, vi minha mãe, uma exímia madame, ser violentada. Furei a orelha. Tentei fugir de casa. Aos dez, senti muito medo do mundo. Aos onze, conheci meu pai, presidiário. Aos doze, já satisfazia os amiguinhos da rua. Aos treze, quebrei a perna e a bacia andando de moto. Engravidei. Tive meu primeiro filho: Muriel. Aos quatorze, novamente, repeti o ano na escola. Aos quinze, dancei na festa. Aos dezesseis, tive o meu segundo filho: Miguel. Aos dezessete, o terceiro: Rafael. Aos dezoito, sai de casa. Aos dezenove, fiz programas, virei meretriz. Aos vinte, quebrei o nariz. Tirei foto em um chafariz. Arrumei um outro emprego. Fui demitida logo cedo. Tive dengue. Depois, uma nova pneumonia. Vinte e um, me converti. Todo domingo estava na igreja. Vinte e dois, casei. Linda de vestido longo, amarelo, véu e grinalda, como nos filmes. Vinte e três, tive o quarto filho: Manoel. Tive complicações no parto. Entrei em coma. Nuvens brancas me rodeavam. Na minha frente, Deus, transfigurado numa antiga máquina de fazer sorvetes, falava comigo sobre planetas, marmelada e futebol. Voltei à vida aos cinquenta e vivi cuidando dos filhos, dos netos e bisnetos, até os cento e dez anos de idade. Retornei aos céus numa noite quente, quando dormia solitária, abandonada, num quarto úmido nos fundos de um asilo.

 

Como eu queria continua a viver humano!

 

Na minha quinta vida eu fui máquina. Voltei triunfante. Tinha a força elétrica perpassando pelos fios envoltos nas minhas entranhas. Não tinha mais sangue. Mas pensava, raciocinava, alegre e feliz, como antes. Sabia das minhas funções e da minha missão. Novamente tinha asas, mas agora feitas de aço e ferro. Eu tinha um tanque cheio de gasolina que alimentava minhas energias. Era sempre pilotado por controle remoto. As vezes funcionava sozinho com minha própria inteligência artificial. Dessa vez eu era um jato, tipo drone, da esquadrilha dos bombeiros. Era todo vermelho, brilhoso. Feito exclusivamente para salvar vidas em locais de difícil acesso. Ia e voltava trazendo gente para o hospital, gente acidentada em locais perigosos, nos imprevistos das estradas, nos prédios que pegavam fogo. A vida era minha relíquia, meu objetivo, meu vício. Salvá-la era tudo para mim, realizava de todas as formas que eu pudesse. E assim eu fiz. Vivi centenas de anos sendo remodelado, reestruturado a cada atualização da tecnologia e do sistema. Até que minha vida útil acabou. Fui jogado num armazém fedorento e escuro como uma carcaça abandonada. Por lá fiquei esquecido por muitos anos, enferrujando lentamente. Até que fui, novamente, descoberto e acabei por ser triturado numa fábrica de reciclar.

 

Como eu queria continuar a viver máquina!  

 

Na minha sexta vida, essa que agora vivo, sou um corpo celeste. Sou um tipo de estrela cadente, fugaz. Observo do alto cada um de vocês. Seus vícios, seus medos, suas angustias, suas traições, suas guerras, suas invenções. À noite, sou tão brilhante como de dia. Sou a mais bela das estrelas do espaço, desse universo que vos cerca. Permaneço grande, imenso, do tamanho de uma lua, igualmente iluminada. Viajei por velocidades indizíveis, por grandezas quânticas inenarráveis e passei por portais dimensionais de tamanhos tais quais milhares de sois. Amo as anãs azuis. Admiro as gigantes vermelhas.  Tenho uma paixão secreta pelos buracos negros. Viajei a quilômetros por hora pela Via Láctea. Adentrei ao vosso sistema solar atraindo planetas, satélites, luas e orbitas sem precedentes. Aqui, no infinito colorido, o etéreo é palpável diante daquilo que não tem nenhum sentido. Em algum momento virei asteroide. Agora, viajo indistinto e interminável, inevitável, em direção ao vosso planeta. Viajo com o único e pleno objetivo de restabelecer o conflito natural e destituir a velha ordem. Trago o fim pela subversão da parte mais bela da existência: a vida.

Revisão: Raiza Hanna

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Conto que faz parte da antologia Fúria de Viver   Editora Euedito (Portugal) - 2017.

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