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FLAUTA DOCE NO CAFÉ DA MANHÃ

Realizei minha última viagem ao passado. Era uma cozinha. Mesa posta. Toalha nova. Transparente. A bainha bordada. Havia o cheiro do pão quentinho. Um avião sobrevoava a garrafa do leite e passava rente ao pote de manteiga.

 

O RCA baquelite tocava, baixinho, Elvis & Sinatra.

 

Ali eu me avistei. O pequeno Gérson Silva. Ainda com aqueles olhos brilhantes e o cabelo crespo. Eu brincava com meu aviãozinho de madeira enquanto soprava minha pequena flauta doce marrom. Gertrudes, minha mãe, preparava o café perto do armário em alumínio. Arnaldo, meu padrasto, lia o jornal. O velho ergueu os olhos sobre aqueles óculos quadrados e disse entre os dentes: — fosse meu filho, não faria!

 

Olhei para as flores rosadas do papel de parede despedaçado. No teto, o lustre com bobeches de cristal que eu tanto odiava. Mamãe me deu um beijo na ponta da testa onde jazia uma cicatriz em forma de V. Fruto da triste noite anterior a qual, peço desculpas aos senhores, não declamarei aqui.

 

Mostrei para mamãe a invenção que havia criado para fazer meu aviãozinho planar. Ela disse que eu seria um grande gênio no futuro. Lembro que naquele instante me imaginei cientista. Então eu desbravei com meu planador toda a mesa da cozinha, entre os talheres, o açúcar e o bolo de fubá.

 

Soprei bem alto a flauta doce.

 

Meu padrasto tossiu forte. Pigarreou duas vezes e depois bateu com uma das mãos na mesa: o avião foi parar perto dos pés de palito cromado da geladeira azul; a flauta doce quebrou ao meio quando bateu no chão de piso escuro em forma de xadrez. Eu pequeno, atordoado, botei as mãos no ouvido. Olhei para mamãe. Ela me abraçou. O verme se levantou. Veio em minha direção.

 

Parou no meio do caminho. Morreu com o projetil 32 Smith & Wesson em seu peito.

 

Sim! Eu dei o tiro. Voltei ao passado para me salvar. Eu era o vulto por traz da cortininha da janela. A velha sombra que carregava a cicatriz em forma de V na ponta da testa.

 

Sim! Acreditem! Eu estive lá, senhores. Sempre. Por todos os dias. Nas minhas mais profundas abstrações.

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Conto que faz parte da antologia Canarinho - Editora Porto da Lenha - 2016.

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