MEU QUERIDO ELYON
Querido Elyon,
Como andas em tua longa viagem? Cada dia mais eu aguardo a tua chegada com esperança e satisfação. Infelizmente esta é a última carta que escrevo para ti. Nela só tenho a expressar sentimentos derradeiros.
Ainda passamos por grandes dificuldades, principalmente nestes últimos dias. Impaciência, tristeza e solidão parecem destruir os seres humanos. Minha família está em pânico. Meu pai anda sempre armado, com sua escopeta nas mãos. Minha avó reza o terço e canta alto uma ladainha estranha que a todos enlouquece. Apesar do fim próximo, ainda tento manter as aparências, na roupa, no cabelo, na maquiagem em frente ao espelho.
Nossa vida não é mais a mesma. A maioria das outras famílias desapareceu com a aproximação do evento de impacto. Dizem que algumas delas fugiram para suas casas de veraneio nas serras. Outras foram para os bunkers subterrâneos construídos pelo governo. Meu pai, por teimosia, não quis sair daqui. Acho que, na verdade, nós não fomos escolhidos para ir. Às vezes eu odeio meu pai, aquela birra, aquele rancor! Estamos isolados aqui. Cortaram a eletricidade. Falta água também...
O plano de contingência continua... Desta vez os governantes do Brasil, como medida de segurança, proibiram que as pessoas fiquem perambulando pelas ruas. Da janela de casa vejo a praça deserta, tomada por bandos de pessoas que cometem crueldades com as outras. Elas dizem que fazem isso em teu nome, Elyon. Eu não acredito. Acho-te tão lindo. Não farias isso conosco, não é?
A novidade desta vez é que deixei de ir para a escola. Fecharam todas elas há quase duas semanas. Mas eu não gostava muito de ir lá. Já falei isso em outra carta, não foi? Não que eu fosse pouco estudiosa. Tu sabes. Muito pelo contrário. Sempre me esforcei e tirei as maiores notas da turma. Talvez por isso aquelas perseguições constantes, as brincadeirinhas estúpidas daquelas meninas idiotas. Michele nunca gostou de mim. Talvez por nossa aparência ser tão igual: magreza extrema, pele clarinha, cabelo loiro, o meu liso e o dela encaracolado. Foi só ver-te surgir que isso ficou cada vez mais aparente para mim. No último dia na escola, nós brigamos feio e ela arrebentou-me a cara. Mas não importa. Não haverá mais escola amanhã. Não haverá mais essa raiva encubada e nem muito menos aborrecimento...
Meu querido Elyon. Ontem à noite Bia e eu resolvemos sair escondidas, só para ter ver. O plano de evacuação voluntária criado pelos governantes do Brasil parece ser um desastre. As ruas estavam recheadas de lixo, lama. Devastação e fogo por todos os lados. Lojas depredadas, casas invadidas e destruídas, e também vimos corpos, muitos corpos pelo chão. Mas continuamos andando só por ti; e estavas lindo, como sempre, à luz do luar. De cima de um monte nós duas fizemos um pacto. Eu e ela nos beijamos e nos acariciamos e também fizemos outras coisas que tenho vergonha de te contar agora. Acho que sempre quisermos fazer isso. Mas desta vez, com toda essa confusão e com a proximidade do fim de tudo que conhecemos, acho que tivemos coragem. Temos que te agradecer por nos encorajar...
Na volta dessa aventura romântica quase aconteceu uma tragédia. Fomos perseguidas por um bando liderado sabes por quem? Por Michele e suas amigas. Corremos durante muito tempo, mas fomos cercadas perto do muro alto do parque municipal. As meninas, eram dez, diziam palavras terríveis e estavam com paus e pedras nas mãos. Michele, com olhos enfurecidos, dizia que ia me quebrar e me matar! Então não teve jeito e nós caímos numa luta esganiçada, com unhadas, puxões, socos e chutes. Num determinado momento ela me estrangulou no chão. Nessa hora eu te vi no firmamento. E acho que foi aí que encontrei forças e consegui suspender a desgraçada com um golpe na barriga. Virei-a para o chão. Acho que eras tu quem me protegia e me dava força. Esfreguei a cara daquela vagabunda no mato. Mas no momento final, antes de escorraçá-la de vez, uma daquelas chuvas de pedras novamente se precipitou e nós tivemos que nos esconder. Saí de cima da maldita, peguei nos braços de Bia e nós fugimos. Na correria, quando olhei para trás, vi Michele ser atingida por uma das pedras, depois uma fumaça anuviou meus olhos e não vi mais nada. Voltamos para casa.
Dizem que, no dia final que se aproxima, os mortos renascerão. Será a ressurreição como está na Bíblia? Meu pastor Marcos sempre nos alertou para isso. Sempre esperei que esse momento fosse verdadeiro. Agora mais do que nunca... Sabes, ainda sinto muita saudade... Já te contei que, quando ela se foi, cinco anos atrás, eu ainda não te conhecia. Acho que ninguém te conhecia. Mas hoje vejo que tu vais me ajudar quando chegares aqui. Vais me auxiliar na realização de meu único sonho: o de ver novamente minha amada mãe, sentir seu cheiro, beijar sua testa, segurar suas mãos e falar novamente com ela. Tu trarás o Juízo Final! Assim eu rezo. Minha vida ficou vazia desde que minha mãe se foi. Agora que o mundo de verdade vai acabar, percebo que o meu mundo recomeçará pelo amor, em algum lugar no universo, bailando na ponta das estrelas, ao lado de minha mãe...
Meu querido Elyon! Amanhã chegarás aqui, no meu país: o Brasil. E então finalmente nos encontraremos. Tua viagem pelo espaço transformou minha vida. Uma de suas partes, a menor, aportou primeiro e fez um baita estrago aqui. Tu, a parte maior, vens vindo indelével e indestrutível. A cada dia eu te admiro mais. A cada momento chegas mais perto de mim. Eu estou pronta! Meu pai diz que tu és a coisa mais terrível que Deus construiu! Minha avó te xinga de demônio. Na televisão sempre te chamavam de meteoro...
Eu prefiro te chamar de Elyon... Meu querido Elyon...
Espero-te...
Melissa.
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Conto que faz parte da antologia O Fim Vem das Estrelas - Editora Litere-se - 2017.