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O DRAGÃO DO CHORUMIM

O Ralo sangra. A Selva ataca. Meu desalento. Um dragão estilizado. Quando fecho os olhos eu lembro da morte. De antes disso, do horror da Terceira Guerra. De como eu vaguei, por meses, entre os sobreviventes de uma das bombas que devastou parte do mundo. De quando eu acuei numa área inóspita do marco central do Brasil.

 

Ali eu encontrei Carmemsina. Logo surgiu Brenno, meu único herdeiro, que nasceu com nanismo. Pele negra dos avós, cabelos lisos da mãe, os olhos azuis do pai. Foi com eles que vivi os melhores momentos de minha vida. Foi com eles que observei o primeiro despejamento.

 

Naquele dia caçávamos roedores perto de uma encosta. De longe notamos, incrédulos, a aproximação de centenas de gigantescas aeronaves cargueiras, vindas da parte do mundo vitoriosa no conflito.

 

Era o resgate! Não! Ilusão.

 

O espetáculo do despejo. O grotesco diante de nossos olhos. As naves chegaram e, uma a uma, abriram seus decks inferiores. Ventos e tremores. De seu interior caíram miríades de toneladas dos mais variados resíduos sólidos existentes. Verme e podridão. Sujeira e imundície. O entulho e o detrito. A escória e a sobra.

 

O refugo do outro mundo pujante. Choramos assustados. Assistimos as naves partirem. Outras voltaram, repetidas vezes. Não só durante aquele dia, mas pelos anos seguintes, de forma ininterrupta, sempre num intervalo exato de três horas.

 

Aos poucos, nesse vaivém frenético, imensas montanhas de lixo se estenderam por milhares e milhares de quilômetros. Foi assim que surgiram os imponentes vazadouros do novo mundo: KOP-3 americano; ANTISILICON europeu; MASERON atlântico; GIGAM africano.

 

Foi assim que surgiu o CHORUMIM sul-americano.                                                         

***

Blindadas. Não tripuladas. 10 turbinas. 800 km/h. 150m de comprimento. 100m de envergadura. As naves me lembravam os cargueiros ucranianos. Eu as observava atentamente com meu pequeno na corcunda enquanto vasculhávamos as colinas. Mas outro gigante nos chamava a atenção.

 

Era a língua preta. Um pélago de líquido percolado que invadia os vales que serpentavam as infinitas cordilheiras de lixo do Chorumim. O famoso Mar de Chorume, que dividia o lixão em dois.

 

No lado norte desenvolveu-se um governo central hierárquico com organização social mais abastada que chamávamos de Selva. Ao sul existia o Ralo, onde vivíamos. Sem governo. Sem estrutura social. O Ralo era o lixo do lixão. O resto dos restos. A parte podre, fétida e bestial do novo mundo. O escarro e o escárnio.

 

Diferente da Selva, aqui não havia energia elétrica. De noite, por falta de sílica abundante, vivia-se o frio extremo, a luz parca de lampiões. Não havia plantação. O solo e o lençol freático eram tóxicos. Sobrevivia-se através da negociação do subproduto por comida, água, sexo ou droga. Qualquer ser vivo era caçado: Não chore, filho! Um dia teremos outro cachorro!

 

Em dez anos o Chorumim se tornou o maior lixão de todo o mundo ocidental, o mais populoso e temível. Uma terra devastada, imunda, repleta de poluição, de atmosfera pesada, de doenças mortais.

 

Invasões, saques e roubos. Negociata e chantagem. Selva e Ralo se complementavam, mas também combatiam. Carmem, Brenno e eu estávamos sempre envolvidos na guerra. Protegíamos somente a nós mesmos e a nossos amigos. Sim! No meio de toda essa falta de humanidade ainda havia algum tipo de hombridade. Eu não duvidava dela. Tínhamos uma aliança: os Brutos do Ralo. Entre nós não havia violência, nem estupro e nem vilania: Duvide dessa lei, Brenno!

 

Vez ou outra, saqueadores vinham dos céus e levavam nossa gente. Foi assim com Ana e Flávio, filhos de Milton. Foi assim com minha Carmem.

 

***

 

No dia em que testava sua máquina para despoluir a água do chorume, Carmen desapareceu. Encontrei o seu corpo, sem os órgãos, dias depois, sobre os entulhos.

 

Raiva! Ódio! Indignação! Perdi minha guerreira, a mulher de olhos castanhos, postura enérgica e fala meiga. Uma oração foi feita na capela ecumênica. Mesmo ateu, eu compareci. Observei imagens religiosas quebradas volitando sobre minidrones cambaleantes. Após o culto joguei sua carcaça no Mar de Chorume. Era assim que fazíamos com todos os mortos. Principalmente os ceifados pela leptospira.

 

Eu precisei criar Brenno para sobreviver. Esperteza! Rapidez! Negociata! Ele tornou-se o mais ágil dos coletores. Quando se iniciava um despejo era ele o primeiro a chegar em casa. Antes mesmo do alerta de evacuação tocar nos tacanhos celulares. No pós-despejo era ele o desbravador pioneiro dos novos detritos, superando a todos, na zona bruta do lixo mais valioso: o REEE.

 

No Chorumim nunca existiu proteção, legislação ou diretiva legal. Sendo assim, o aumento do lixo eletrônico, apesar de trazer consigo substâncias nocivas, era a nossa maior riqueza. Dele obtínhamos as placas, os fios, os transmissores, os conectores, as mantas digitais e as baterias ainda perfeitamente reutilizáveis. Com ele recriávamos nossas próprias máquinas, apesar da precária comunicação com os satélites. Dele tirávamos ouro, prata, cobre, todo o metal que trocávamos nas fronteiras por armas e munições, baterias duradouras, dispositivos de purificação para as tubulações de oxigênios dos casebres e nossas narinas no intuito de evitar o ar repleto de gás metano.

Sobrevivíamos com sucesso. Até que o dragão apareceu.                                  

 

***

15 anos do meu garoto. Guardei luva e bota. Troquei a roupa plástica. Aparei a barba grisalha. Lustrei a careca. Um afrouxamento necessário da nossa cotidiana falta de estética e vanidade.

 

Os Brutos, suas esposas e filhos, estavam todos lá: o Milton, o Zé bagulho, o Punzinha, o Vicente, o velho Arconte. Nosso humilde acampamento, construído por escavações na base subterrânea de um monte, era o mais iluminado. Os despejos dessa noite não nos acanharam. Houve paz por um momento.

 

A Bossa Nova acalantava os espíritos.

 

Quando as crianças dormiram, começamos a planejar. Como melhorar as defesas do Ralo? De que forma faríamos o biogás para produzir energia elétrica? Como construiríamos o biodigestor no subsolo para não entrar oxigênio? Achamos frames, motores, controladores e hélices. Estávamos perto do nosso primeiro Multirotor de Curta Distância. Eram possibilidade que só a união poderia realizar. Eu ainda acreditava nisso tudo. Apesar de tudo.

 

Finda a reunião. A pinga desenfreada. A volúpia da madrugada. A droga leve foi liberada. Mas sabíamos que alguns se arriscavam em algo mais pesado. Eu, com cana no cérebro e o preparado na veia, cochilei por uma hora. Sonhei com minha Carmem.

 

Acordei. Saí do acampamento e fui até a borda do Mar de Chorume. Foi o destino. De longe, percebi uma estranha movimentação no horizonte. Não deu tempo de avisar aos outros. Foi como um raio. Um clarão tão forte e tão belo que iluminou de azul toda a região do Ralo. Uma bomba teleguiada atingiu nosso acampamento! Vi corpos voando. Vi choro e lamentação. Pelos céus, centenas de drones de assalto. Por terra grupos armados passaram facilmente por nossas linhas de defesa. Alguém nos traiu! A Selva empreendia sua mais terrível invasão. Com o objetivo de destruir o Brutos, eles mataram, um a um, nossos principais líderes. Depois, começaram a saquear e levar mulheres e crianças.

 

Desesperado, eu corri para pegar meu garoto. Quando cheguei perto de casa observei, zunindo pela porta, um sujeito alto, encapuzado, que levava Brenno, desacordado e com o rosto sangrando, no colo. Carreguei minha Magnum 500. Disparei vários tiros. Errei todos. Continuei a caçada. Apesar da barriga e do entorpecente, eu consegui alcançar o inimigo. Agarrei-o pelo pescoço. Puxei-o pelas mãos.

 

Um monstro projetou-se. Susto. Apreensão.

 

O verme possuía uma tatuagem biossensível de um dragão chinês estilizado nas palmas de sua mão. Uma luz forte cegou-me por segundos. Seria o novo emblema da Selva? Não tive muito tempo para pensar. Um soco e uma rasteira do meliante e nós três rolamos por uma ladeira. Brenno caiu ainda desmaiado. Fui em sua direção. O sujeito do dragão nas mãos voltou e pulou em minhas costas. Usou uma arma de choque elétrico e me paralisou. Apaguei.

 

De certo perdi a noção do tempo. Quando dei por mim percebi, nos céus, ao longe, o surgimento das aeronaves. Por Deus! Um novo despejo começaria a qualquer momento. A sujeira cairia dos céus em instantes.

 

Virei-me em direção ao Mar de Chorume. Vi o homem do dragão segurando meu menino já do outro lado do vale. Chorando eu gritei: Largue o meu pequeno. O sujeito riu e levantou seu dedo médio.

 

Foi então que uma aeronave parou em cima deles. Gelei: Brenno! A comporta se abriu e, por entre aquela chuva de mais de seiscentas toneladas de lixo espacial, eu vi meu menino sumir junto com o seu dragão sequestrador.

 

Ajoelhei. Uma outra sombra se locomoveu acima de mim. O deck se abriu. Fechei os olhos. O entulho foi despejado. Senti o lixiviado. Tudo escureceu. Eu morri.

 

Meu corpo foi resgatado duas horas depois por Vicente, um dos Brutos que sobreviveu ao ataque. Ele disse ao meu ouvido: Bira! Seu barrigudo filho da puta! Vai levar anos pro cheiro sair do seu corpo. Você teve sorte. Aquela nave trouxe apenas resíduos líquidos dos esgotos domésticos. Fique tranquilo.

 

Vamos recomeçar...

 

Não recomeçamos! Eu morri para o mundo quando perdi meu pequenino. Vicente morreu de fato, assassinado, duas semanas depois. Os Brutos sucumbiram. Assim como todo o Ralo, que sangra, devastado, invadido e saqueado pelos ataques inimigos.

 

Tudo agora é uma grande Selva. Nela eu vivo perdido pelos vales e montanhas, pelos detritos e o chorume. Troquei a Magnum por um prato de comida podre. Fugi. Me escondi. Privei-me. Vendi minha alma. O lixo só aumenta. O coração não descansa. O desalento continua. Agora eu apenas observo a luz. Vejo um demônio. Lembro da tatuagem que ascende. Viva a civilização! Venceu o dragão do Chorumim.

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Conto que faz parte da antologia Evolução: Contos de Ficção Científica - Autografia Editora - 2019.

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