O CRUCIFIXO DO DIABO
Hoje seria um bom dia para vender um coração, pensou ele tentando entreabrir os olhos. Não tinha dúvidas sobre isso. Arredou as pálpebras chumbadas e notou pela janela de seu quarto, de vidros sujos e embaçados, de forma torta e desfocada, os raios solares com sua ardência espalhados que já estavam pelo brilhoso firmamento límpido. Ele sabia que o preço de suas iguarias estava em alta no mercado, sabia da crise internacional, sabia dos lucros no comércio paralelo. Mas algo nele, algo que ele ainda não compreendia, não o deixava realizar tal empreitada. Não naquele dia.
Era uma maldição, disse uma voz dentro de sua mente. Eu sei que já falei isso! Imbecil! Juanzito de merda! Ele próprio respondeu de forma abafada. Então se forçou a pensar em algo bom. Lembrou do seu crucifixo. Mas ele não enxergava mais o objeto em seu quarto. O seu amuleto tão lindo. Nesse momento, ao mesmo tempo que tinha dificuldades para girar seu pescoço de lado, lembrou do passado. Do encerramento da Litaniae Sanctorum do rito de ordenação do saudoso Bispo Ernesto Ahumada da Catedral Metropolitana da Cidade do México. Local onde ele ganhou o crucifixo de prata que sempre carregava consigo dependurado ao redor do pescoço. Foi ali que deixou de ser o simples diácono mexicano Juanzito, de semblante bochechudo, pitoresco e mestiço, para começar a sua profissão de fé como mais um sacerdote da Santa Madre Igreja. Foi lá também que ele ganhou o título de melhor orador da cidade. Uma vida de sucesso no sacerdócio. Uma bela carreira episcopal não é mesmo Juanzito? Pena que tenha durado tão pouco, ajuizou ele em voz alta. Não era Deus que falava em sua mente, nem mesmo o capeta, pois ele não acreditava em nenhum dos dois. Só acreditava na força do seu crucifixo. Mas se ao menos ele pudesse achá-lo dentro do quarto. Mas se ao menos ele conseguisse levantar-se.
*
Ele não via o tempo passar. Sentia febre, fome, frio e fustigação. Alguém aí fora? — Gritou, pensando consigo mesmo que aquela sua reação histérica era sem propósitos, pois naquele prédio ninguém se importava. Mas ele também não se importava com aqueles seus vizinhos sujos e indecentes. Danem-se todos, murmurava. Detestava-os, em geral, e principalmente aquele maldito padre satírico e assassino do quinto andar com seus vícios sexuais! Qual é o nome dele mesmo? Chris Lewis!
Juan sabia do histórico imundo daquele padre, mas também lembrava sempre do seu passado desgraçado. Do dia em que largou a batina e deixou de lado o sacerdote Salvador de La Cruz e começou a viver perambulando pelas ruas da Cidade do México fazendo todo tipo de bico. Perdeu sua fé no mundo, rodeou por meses até encontrar uma organização criminosa que fazia tráfico internacional de órgãos. Foi cooptado para ser transportador e pela sua facilidade em discursar e convencer as pessoas apreendeu as técnicas de sequestro e das operações para retirada de órgãos. Subiu dentro da hierarquia do crime e depois de enganar alguns idiotas tornou-se um dos chefes da organização. Ganhou dinheiro, engordou, ficou calvo e perdeu tudo várias vezes. Tornou-se foragido da polícia local e da Interpol. Percorreu o México a procura de abrigo.
Depois de dez anos de vida no crime, de órgãos retirados, de vendas milionárias, percebeu que o México não era mais seu lar. Em 2010 fugiu, de forma clandestina, para os EUA. Andou lôbrego pelas ruas das regiões fronteiriças até encontrar um prédio nefasto perto do Deserto de Tule no número 666 da Avenida Murkinesse. Transformou o prédio, até hoje, no seu esconderijo e se tornou apenas e tão somente Juan Diego, o maior traficante de órgãos das redondezas.
Ele lembrava do passado, mas sabia que deviria sair da situação em se encontrava agora. Será que foi Lewis que fez isso comigo? Ou foram as sombras? Tentou mais uma vez. O som ressoou baixinho e sem sucesso: — Há alguém aí fora? Não quero morrer. Há muito o que vender.
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Juan Diego ainda conseguia sentir seu coração batendo acelerado. Sua respiração estava enfraquecida e raciocinava plenamente. Percebeu isso enquanto observava pela janela a lua clara e bordada com tons de névoa e azul. Que irônico! Ele lembrou que possuía ainda alguns órgãos, tecidos e células no seu congelador. Para ser mais exato três córneas, cinco válvulas, restos de pele, treze tubos de sangue, medulas ósseas e dezenas de cartilagens além é claro de um coração, dois fígados, um pedaço de um pâncreas e dois rins. Minhas iguarias.
Também possuía um grandioso e límpido pulmão. Aquele, da Dona Elizabeth. Não podia desperdiçá-lo. Lutou muito para consegui-lo. Conheceu a velha, que vivia solitária num casebre do centro, em um coletivo. Ficou visitando-a até convencê-la a conhecer seu apartamento no 666. No dia em questão, um vento quente percorria as estradas cálidas que rodeavam a construção. Dona Elizabeth confiante vestia uma manta preta e chegou tarde da noite depois de andar horas até a Avenida Murkinesse. Estranhou a arquitetura antiga e o lastro de abandono que cercavam a atmosfera do prédio. Não havia ninguém na rua, nos arredores. Apenas o vento. A senhora parou perto da entrada e viu um vulto numa das janelas. Riu e acenou com a cabeça. Mas não havia ninguém lá. Arrepiou-se. Ouviu um grito distante. Entrou pela porta principal. Algumas luzes acesas, um sussurro congelante.
Dentro do prédio Dona Elizabeth procurou o apartamento 1C, que se encontrava logo a frente seguindo o pequeno corredor e bateu na porta. Depois de alguns minutos de angústia, rodeada por paredes mudas que a observavam famintas, ela foi recebida por seu anfitrião que com seu corpão dominava toda a borda da porta.
Depois de muita conversa e várias bebidas eles transaram. No meio do ato, a velha deu um suspiro delirante depois do gozo final e Juan aproveitou o momento para impregnar-lhe um beijo apaixonado e enfiar-lhe a faca no meio de sua barriga. Dona Elizabeth proferiu um berro e apagou na hora. Juan levantou-se nu e andou até a janela. Observou a paisagem árida. Viu espectros enegrecidos no horizonte. Foi ao banheiro lavar-se. Ainda nu colocou o corpo da velha no chão e começou o processo de dissecação.
Juan começou a cortar o cadáver. Ele era observado por estranhas paredes emporcalhadas de umidade e infiltrações. Usava sua mala especial onde detinha os instrumentos de autópsia. Beijava seu crucifixo a cada parte cortada. Passava o facão e assoviava e beijava o crucifixo. Precisava daquele pulmão. Mas de repente um assombro horrendo. Da boca de Dona Elizabeth reverberou-se um suspiro fechado. Meus Deus! A velha ainda estava viva. Juan levou um susto tão grande que soltou para trás e seu corpanzil fez um barulho estrondoso no chão de tacos de madeira carcomida. De forma inacreditável, Dona Elizabeth levantou-se com a barriga aberta e as vísceras para fora, bufou com som enfadonho e correu para cima de Juan segurando seu pescoço carnudo. Os dois corpos grandiosos rolaram numa rinha épica, selvagem e virulenta pelo quarto 1C. Não demorou para que o sangue, junto com os pedaços e as partes da velha, saltasse e escorresse pelo ambiente. Juan conseguiu se desvencilhar da morta viva e empurrou-a. O corpo da mulher esbarrou na geladeira que tombou por cima de Dona Elizabeth matando-a definitivamente.
Juan esbaforido deu um grito rouco. Xingou e esperou. Depois de minutos levantou a geladeira e aproximou-se. Não teve pena ou dúvidas no que deveria continuar a fazer. Colocou as luvas de látex, pegou o bisturi, a pinça grossa, a agulha fechada, os alfinetes e a tesouras. Depois os separadores e a sonda acanalada. Cortou vísceras, veias, músculos e ossos. Juan Diego beijou seu crucifixo. Bebeu uma cerveja quente. Continuou. Em instante alcançou o pulmão direito. O cheiro não era dos mais agradáveis. Talvez os vizinhos pudessem reclamar, pensou Juan. Mas quem se importa? O pulmão saiu e ensanguentado foi lavado e embalado numa sacola com gelo e inserido dentro do congelador. Juan tomou outra latinha quente e ofereceu um gole a Dona Elizabeth. Riu. Era disso que ele gostava. Beijou insistentemente o crucifixo de prata.
Sua mente deixou de lembrar do passado e voltou a reconhecer seu estado atual. Você continua um homenzinho de merda não é Juanzito? Pensou ele. Que irônico! Agora não tinha quase forças em seus pulmões para gritar.
*
A madrugada abordou. Ainda vivo Juan Diego lembrou que havia um negócio para fechar no outro dia. Havia um novo comprador para o rim. Não tinha sido fácil achar aquele rim. Que o diga a prostituta Anne Lisa. Há tempos que Juan possuía um relacionamento com aquela garota ruiva e magricela. Toda vez ela vinha de madrugada e já nem tinha tanto medo de entrar no prédio da 666. Chegava sempre à meia-noite. Não gostava da umidade e do cheiro de mofo do quarto 1C com aquelas paredes rachadas, com sulcos abissais. Mas depois se acostumava e toda noite era aquela cena de sexo bizarra.
Juan gostava de Anne, mas não teve escolha. Sem contar que a rapariga já estava enchendo o seu saco com as críticas que fazia ao seu jeitão bonachão, pouco salutar e desforme. Desta forma, durante a última madrugada ele ofereceu a ela uma boa dose de uísque misturada a uma enorme quantidade de chumbinho. Quando a falta de ar e o sufoco deixaram o corpo da donzela imóvel Juan começou o trabalho.
Abriu a barriga e vasculhou a procura do rim. O cheiro, o sangue eram insuportáveis. Ele tinha pressa. Sua encomenda era para o próximo dia. Minutos depois, ele retirou o órgão de Anne e o colocou em um saco transparente cheio de gelo. Foi até a geladeira e pôs o produto dentro do congelador. Voltou rápido para tirar o outro rim e os outros órgãos sadios da moça, antes bela e linda, agora apenas um pedaço de carne humana dilacerado pela loucura.
As vezes Juan proferia frases de amor para defunta. Beijava o crucifixo. Pecado e crime, pensava ele. Que maravilha! Sua merdinha! Juanzito merdinha! Retirava mais outro órgão. Agora uma cerveja quente. Um beijo longo e babado no crucifixo. Depois de tudo feito ele decidiu embrulhar o cadáver em um saco plástico preto.
Era preciso despachar a menina assim como fizera com a velha. Pegou o defunto ensacado pelo ombro. Antes observou atento. Girou a maçaneta da porta do seu quarto. O barulho das junções enferrujadas ressoou nos corredores mal iluminados do prédio. A zeladora já tinha começado o seu turno de limpeza nos andares superiores. Não teve dificuldades de levar a carcaça até a entrada. Saiu e caminhou pela noite até a parte de trás da propriedade. Um lugar descampado, sem luz, árido, deserto e com pouca vegetação. Andou até desaparecer no horizonte. Desovou o corpo.
Voltou esbaforido. Entrou no prédio. Beijou o crucifixo. As luzes do corredor piscavam e deixavam o ambiente num breu etéreo. Juan continuou e logo antes de entrar em seu quarto viu duas sombras se mexerem e deparou-se com dois hospedes no corredor. Uma senhora e um sujeito de corpo atarracado, rosto achatado. Juan não sabia quem eram. O sujeito perguntou algo que Juan não entendeu. Mas de súbito respondeu: — primeiro vem o pecado e o crime. Depois vem a sentença e só então a punição. Eu moro no 1C e você pode me visitar outro dia, se sobreviver.
Depois disso, Juan saiu em direção ao seu quarto, ouviu o homem proferir palavras errôneas, mas nem se virou. Entrou no seu apartamento. Isso era tudo o que Juan lembrava da noite anterior. E agora ele estava ali. Em seu quarto. Preso
*
Horas de agonia. Já estava quase amanhecendo. O coração pulsava. Da janela Juan sentia a aproximação da morte que caminhava perene pelos campos áridos. Sim! Ele via as sombras perto da janela. Uma segurava um pulmão, outra um coração e outra um rim e assim sucessivamente. Milhares de sombras, milhares de outros órgãos. Ele as escutava, as pressentia, as ouvia. Os seus lamentos, as suas dores e a sua culpa. O sangue jorrava e saltava pelas partes de seu corpo costurado na cama. Não havia mais saída. Era como uma maldição.
Ele já não sentia o seu rim, nem seu pulmão, nem seu coração. Conseguiu com esforço distender a cabeça para baixo e viu, horrorizado, sua barriga toda aberta, esfolada, com as tripas para fora.
Quem fez essas operações? Quem roubou meus preciosos órgãos? Quem me costurou na cama? Por Deus! Juan clamava aos céus. As dores apenas aumentavam. As sombras voavam pelo quarto e zombavam e riam sarcasticamente. Era um espetáculo de alucinação completo e ele, costurado na cama, não conseguia se levantar.
De repente viu um brilho dentro de sua barriga aberta. Era o crucifixo que estava costurado entre o coração que batia e o estômago que pululava para fora. O seu talismã voltado para ele mesmo. Não conseguia mais beijá-lo. Não conseguia nem se quer pegá-lo.
Por Deus! Ninguém me houve — disse quase sem forças. As sombras se aproximavam. A cama resmungava e rangia enquanto o pobre homem se mexia na reles tentativa de se libertar. O calor era insuportável. A sede e a fome alastram-se, a cada minuto.
Não quero morrer!
Contemplou o crucifixo. Um raio solar fustigou a beleza do metal reluzente. E ali, no instante fatal, Juan viu crescer um borrão escuro refletido na prata. Era seu reflexo, certamente, mas ele não se reconheceu e duvidou e naquela hora pensou honestamente ter visto a melancólica e temível face do diabo.
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Conto que faz parte da antologia Avenida Murkinesse 666 - Editora Illuminare - 2017.