O GRANDE CLÓVIS
Todo ano, no calor de fevereiro, eu ressurjo. Renasço. Revivo. Peço passagem nesta praça escandalosa: Rio de Janeiro. Já é sexta-feira. Tempo de despertar para o meu carnaval. Uma nova caçada começará. O rei surge, rodopia e canta e Sua Majestade dança e encanta. Já carrega consigo as celestiais chaves da cidade. Está aí o início de minha festa profana. Agitação por todos os lados. A metrópole pulsa, viva. Eu vivo.
Nas avenidas do grande centro e dos subúrbios, enfeites e maravilhas celebram o princípio das festividades. A minha vestimenta já está pronta. Bundas, pernas e peitos nus desfilam por blocos e escolas de samba. Bailes, rodas e malandragem. O apito sopra pelos ventos que se lançam pela urbe carioca. Foliões carnavalescos alugam as ruas, as vielas, os becos. E eu celebro. A sombrinha eu levo na mão. Vamos exaltar os trabalhadores que suam. Sublimar os deuses que rezam e enaltecer os simples homens e mulheres que brincam sem compromisso com o destino. Esses eu protejo. Mas há também o outro lado: tiros, mortes, assassinatos, estupros, violência. Criminosos e drogados também tomam seu lugar na festa. A morte espreita. Anda comigo.
O extermínio estava prestes a acontecer!
Alguns seres imundos, mascarados, numa praça de Oswaldo Cruz vieram para brigar. Não haverá briga! O líder da gangue proferiu, com uma faca na mão, que seu oponente era um tolo e que ele deveria começar a rezar. Reze você, seu fariseu! Amigo, eu te digo com muita sinceridade: aqui existe um vigilante, que está atento. Meu fino sibilo silenciará o coração cheio de trevas. Esses eu mato.
Fiz o serviço antes de meus heróis chegaram.
— O que aconteceu aqui? — protestou, entre os dentes, o policial Filipe Dutra.
Não deixei nada dessa vez, meu guri apaixonado. Nem vestígios, roupas e sangue. Meu garoto percebeu minha total devastação. Era parte de minha cumplicidade desmedida. Sobrevoei a gigantesca megalópole que pulsava em luzes e sons durante toda a noite. Não vi o diabo que vim matar. Está escondido? Demônio!
E você aí rapaz, já sabe sambar?
*
No dia seguinte perdi-me. Dancei diante dos foliões dos blocos carnavalescos em Santa Teresa. Depois, fui até o lugar onde meus compadres trabalhavam. O prédio, velho e enfadonho, da tal Delegacia Especial de Segurança Carnavalesca (DESCA).
Entrei zunindo pela janela. Vi o delegado Hélio Riba-Gallo (o chefe) com cara de emburrada. Estava sentado na mesa. Junto com ele seus principais investigadores policiais: o comandante Dutra, meu menino, acanhado e tímido em pé no canto, perto da porta. A inspetora Júlia Silva, minha musa, sentada numa das cadeiras e o iniciante Vitor Telles, meu conquistador, ao lado da moça. Meus heróis liam o relatório feito pela perícia: era minha festa da noite anterior.
O chefe, rabugento e gorducho, de cútis negra, passou a mão pela sua barba branca. Argumentou com aquela voz chata de sempre: — Vocês três estão loucos! Ou bêbados! É isso? Como que a perícia vai lá, no local do suposto crime, e não encontra uma gota de sangue sequer, um corpo sequer, um mísero penduricalho? Eu disponibilizei centenas de homens do grupamento para nada.
— Foi o Grande Clóvis. — Falou Júlia. Minha menina. Sabe de minha história. Sou famoso. Ela deu o recado ao ler no seu celular. — Aqui diz no Livro Sagrado das Festas Profanas:
“Nos dias e noites de carnaval uma estranha figura surge. É o espectro, aterrorizante e sobrenatural do Grande Clóvis. Em um beco mal iluminado do centro ou em uma rua deserta do subúrbio ele aparece. Nas escolas de sambas, blocos de rua ou bailes de máscaras faz seu festejo particular acontecer. Dizem as más-línguas que ele se transfigura após um fino e ensurdecedor assobio sobrevoando os céus através de uma iluminada nuvem de fumaça branca, cinza e lilás. Da poeira radiante, então, emana a figura do monstro rodopiando ao redor de seu próprio eixo. A sua roupa colorida reflete as diversas cores de um arco-íris ambulante. Sua indumentária consiste em: máscara de tela iluminada, macacão roda baiana lilás esverdeado, capa azul escura e uma gigantesca casaca de brilhantes. Nas mãos as luvas de veludo vermelhas. Nos pés as meias zebradas de azul e branco, além das sapatilhas pratadas. De sua mão direita saem perfumes exalando odores bons e agradáveis de cereja, morango e mel. Dizem que quem sente esse cheiro consegue se libertar dos problemas e curar-se de graves doenças. De sua mão esquerda saem purpurinas iluminadas em um forte jato que deixa qualquer ser vivo paralisado, das pernas até o pescoço, eternamente. A sombrinha gira uniforme e cintilante com luzes estonteantes que cegam aqueles que olham para ela com inveja e rancor. A máscara é feita de diamantes eternos. Na sua implacável busca por justiça ele observa, com seu sorriso enigmático, os verdadeiros foliões. Persegue e mata os maus de coração. Sua função verdadeira é preservar...”
— Chega! Por Deus. — O chefe interrompeu a leitura. Depois esbravejou: — Júlia, não é porque é carnaval que você pode zombar do que estou falando. Correto? Inaceitável essa história de fantasma e espíritos. Tenho trinta. Vocês ouviram? Trinta casos de brigas de bate-bolas pelas ruas da capital: Marechal Hermes, Taquara, Vila Valqueire, Bangu. Apenas na noite de ontem. Eu quero provas. Quero o bandido do Camaleão preso. Podem fazer isso por mim? Por favor! — O chefe levantou-se e saiu da sala batendo a porta.
Nunca vi o chefe tão bravo. Mas ele foi bem no âmago da questão. Camaleão é minha presa desse Carnaval. Vamos encontrá-lo!
Espera. Ainda não!
No meio do silêncio no recinto Vitor pegou na mão de Júlia. Disse: — Você não deveria ter lido aquilo gatinha, pois o Hélio não tolera crendices. — Júlia sorriu como uma verdadeira donzela. Os dois saíram da sala. Dutra ficou sozinho e pensativo. Ajeitou seu cabelo castanho e encaracolado que contrastava com a sua pele morena clara. Ele remoía seu ciúme indisfarçável.
Não aguento isso. Num instante zarpei de encontro a uma roda de samba na Rua do Mercado na Praça Quinze. Lá fiquei no estonteante balançar dos pandeiros dos sambistas.
E você, já aprendeu a sambar? Vem sambar comigo!
*
No domingo, pela manhã, encontrei-me. Leniente, eu abraçava a estátua equestre do General Osório no Paço Imperial. Por sorte vi meus heróis passarem correndo, com seus ajudantes, em direção à Praça Mauá. Fui atrás deles. Beleza. Vamos ter ação. Já estava cansado das broncas do chefe falastrão.
O grupo policial procurava as pistas dos criminosos nas estreitas ruas do Centro. Por uma denúncia anônima subiram o Morro da Conceição no bairro da Saúde através das escadarias próximas ao Jardim Suspenso do Valongo na rua Camerino. Estavam atrás de Camaleão. Conto-lhes a história do crápula: chama-se Josemar Barbeiro Dú Branco. Alcunha de Camaleão por usar diferentes fantasias e se camuflar nelas perfeitamente. Filho de rico empresário do ramo de bebidas. Vigarista de quase dois metros de altura, corpo sarado e forte. Liderava a gangue de bandidos mascarados chamada de TT (Terríveis do Terremoto).
Ao chegarem perto da casa do meliante os policiais foram recebidos com tiros de escopeta. Todo o grupamento se escondeu dentre as muretas dos casebres ao redor. Dutra, meu menino, gritou: — Camaleão? Cercamos sua casa. Não há por onde sair. Temos um mandado de busca e apreensão. Você será...
Mais tiros. Três bombas. Depois, uma granada caseira explodiu e levantou poeira e destroços. Todos abaixaram. Uma sombra carnavalesca saiu correndo pelos fundos. Era Camaleão, minha caça. Vitor afoito foi atrás dele. Dutra e Júlia o acompanharam. Os três desceram o morro através da mítica Pedra do Sal. Eu voando atrás deles parei e fiz aqui uma singela reverência: salve João da Baiana, Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres.
Eles estavam em qual freguesia? Sim! Já os vi.
Chegaram na Praça Mauá, passaram pela rua Primeiro de Março e viraram na Avenida Rio Branco. Dutra ficou para trás com seu corpo já limitado pela barriguinha de chope. Vitor, corredor nato, respirou fundo e disparou o mais depressa que podia. Estava na cola do bandido. Com esforço conseguiu pular no pescoço do traste. Mas outros braços e pernas o seguraram também. Centenas de mãos e pés atravessaram pela frente do jovem policial que caiu no asfalto quente. Uma aglomeração vinha em sua direção e cantava de forma ordeira, mas também alucinada: ― quem não chora não mama.
Era o maior bloco da cidade: o Cordão da Bola Preta!
Camaleão sumiu na multidão. Júlia puxou Vitor para o canto antes de o rapaz ser pisoteado pela turba barulhenta e pelo caminhão de música. Sobrevoei todo o bloco de rua atrás do dito cujo. O demônio escapou como um legítimo fantasma. Igual a mim.
— Não dá cara! — gritou minha pequenina — você ficou louco. Esse é o Cordão da Bola Preta. Não está vendo? Tem mais de um milhão de pessoas.
— E agora? — disse Vitor.
— Vamos voltar para o prédio da DESCA. — Júlia se aproximou do colega. Ela encarou os lindos olhos castanhos dele. Ele observou o belo sorriso dela. Ela passou a mão pelos cabelos dele. Ele viu aquela pele preta que brilhava ao sol do meio-dia. Ela, por fim, sussurrou: — Antes me dá um beijo.
Lá de cima, pude ver Dutra, meu pequeno. Ele observava, calado, o ósculo saliente de seus amigos apaixonados. Vestidos com as roupas da polícia especial eles foram vistos como dois foliões enfeitados. Era a mágica do carnaval. Dutra pensou em chamar-lhes a atenção. Mas não conseguiu. Saiu do lugar cabisbaixo. Pobre menino.
Eu não aguento. Preciso entorpecer-me. Desci em meio àquela multidão e fiquei ali, esparramado, sentindo o sabor de toda aquela gente. Eu sou o povo!
E você! Quer aprender a sambar comigo?
*
Na segunda acordei entre os mendigos, os esfarrapados e os bêbados da Lapa. Já era quase noite. Cruzei a Avenida Mem de Sá e serpenteei pelos arcos do Aqueduto da Carioca. Fui em direção ao povão que lotava a Cinelândia e dancei cheio de estilo. Ninguém notou minha presença, como de costume. Gosto disso. Sou um fino folião discreto e compenetrado e aproveito a vida e a morte sem ser visto.
Lembrei da minha missão. Mas não sabia onde tinha deixado meus amigos de
caçada. Voei até a delegacia e observei o chefe falando ao telefone. Eles estavam numa investigação perto da Marquês de Sapucaí.
Uhh! A história estava começando a ficar boa. Fui para lá.
Quando cheguei meus três bravos policiais já estavam agachados perto de uma das marquises do viaduto Trinta e Um de Março. Esperavam a gangue dos mascarados junto com toda a equipe de policiais. Os imundos combinaram uma briga na região: o grupo de Camaleão vestia seus malcheirosos macacões escuros com listras rosas e máscaras douradas e segurava porretes nas mãos. O outro grupo vestia roupas amarelas com máscaras cinzas e carregavam potentes facões.
— Não façam nada até que Camaleão dê as caras. — Argumentou Dutra para seu pessoal. Júlia e Vitor atrás dele deram um risinho singelo um para ao outro — Ele estará fantasiado, igual aos seus comparsas. É o mais alto deles. Preparem-se.
Logo, os dois grupos de bate-bolas chegaram ao lugar marcado. Um veio pela rua Frei Caneca e o outro pela Avenida Salvador de Sá. Esperaram alguns instantes. Meu coração palpitava de emoção e raiva. Estava atento!
Minutos depois, o enfrentamento iniciou-se diante de meus olhos.
— Esperem! — berrou Dutra pelo rádio — Camaleão ainda está escondido.
— Olhe! — Júlia apontou para a direção da confusão — ele está lá no meio. É o grandão com um punhal dourado na mão.
— Sim! — Dutra se levantou e correu com sua pistola. Bradou: — Parem todos! Vocês estão presos!
De dentro dos carros e de trás das marquises saíram dezenas de policiais. Os grupos de bate-bolas soltaram bombas e coquetéis molotov e em instante a região virou uma praça de guerra. Como ratos, os criminosos sumiram pelos becos. Alguns, dentre eles Camaleão, correram em direção à Avenida Presidente Vargas. Dutra, Júlia e Vitor foram atrás deles. Camaleão desapareceu entrando em direção a Marques de Sapucaí.
Num pulo eu já estava na Concentração. Perdi-me diante da bateria da Verde e Rosa. Sambei rodopiando pelas frisas e arquibancadas do Setor Um. Cheguei bem alto no céu. Nuvens de raios avolumavam-se. Desci e percebi meus heróis correndo atrás do diabo que adentrou a avenida junto com a escola de samba.
— Ele infiltrou-se numa das alas. — Júlia falava alto pelo rádio.
— Qual delas? — gritou Dutra. Seguia pelas frisas.
— Aquela que tem os bate-bolas.
— Vai lá atrás dele. Eu dou cobertura daqui.
Júlia e Vitor correram em pleno desfile. Os dois passaram pelos passistas, pela majestosa Velha Guarda e pelas lindas Baianas. Observaram temerosos os gigantescos carros alegóricos. Chegaram finalmente na ala dos bate-bolas. Ali se separaram. Vitor ficou investigando um tripé alegórico. Com seu mini revólver em punho Júlia perpassava os mascarados que pulavam ao ritmo do samba enredo.
— São muitos. — Disse a menina — Não podemos ferir os inocentes.
— Qual deles será o Camaleão? — falou Vitor.
— Eu não sei. Procure pelo maior deles.
De repente, um reflexo de luz chamou a atenção de Júlia. A lâmina afiada de um punhal dourado surgiu diante de seus seios robustos. Foi pega por um dos bate-bolas. O maior deles. Júlia suou frio. Era Camaleão. Ela apontou o revólver e um folião desastrado esbarrou em sua arma. Ela caiu. De dentro da máscara o bastardo ria impune.
Do outro lado, nas frisas, Dutra viu a cena. Apontou a mira da pistola para o detestável vilão. Desistiu. Era muita gente.
— Júlia! — gritou meu menino apaixonado. Depois se virou para Vitor do outro lado e berrou: — Vai lá, rapaz.
Vitor correu. Não daria tempo. O agressor esfaquearia minha doce menina de olhos castanhos. Não! Não permito! De súbito voei o mais rápido possível. Esbarrei no pilantra. Ele tombou no chão de concreto e, com seu punhal fora de alcance, cambaleou pela avenida. Correu ultrapassando as alas e os carros alegóricos. Vitor ajudou Júlia a levantar-se. Os dois foram atrás do fugitivo.
Eu fui junto.
Em tempo chegamos no setor da Dispersão e observamos que o mascarado corria em direção ao arco parabólico da Praça da Apoteose. Dutra, que conseguiu sair com dificuldade das frisas, o pegou com um golpe em plena cara. Depois, rolaram no chão. Por fim, o policial pulou em cima do fujão e tirou a máscara do canalha. Surpresa! Vimos que não se tratava de Camaleão. Não era o rato criminoso que queríamos. O falsário tinha escapado novamente por entre a multidão.
Depois de alguns minutos o comandante dispensou seus homens. Deveriam voltar a delegacia. Mas insistente foi atrás de Júlia e Vitor. Meu pobre menino.
De um raio veio o temporal que precipitou por todo o local. Num canto remoto nos arredores da Sapucaí, numa rua mais escura, entre os lixos, Dutra encontrou seus companheiros. Estavam encharcados: ele pouco vestido e ela seminua. Beijavam-se alucinados. As grossas pernas da menina preta e linda se avolumavam entre as mãos suaves do jovem rapaz moreno. Dutra tentou chegar perto dos dois. Hesitou. Foi embora, triste.
Eu não aguento. Voltei rápido para dentro da avenida. Terminava o desfile da Estação Primeira de Mangueira. Minha Paixão. Na Apoteose o carnaval se fez e se refez. Meu reduto. Meu esplendor. Eu precisava de um porre.
Sambei até o amanhecer.
*
Por toda aquela terça-feira gorda sobrevoei as festas suburbanas: nos fundos de quintal, nos churrascos das esquinas, nos bares encardidos. Estanquei nos becos das favelas e nas ruelas da cidade atemporal. Estava à procura de comida, bebida e um pouquinho de fumo. Despertei já era noite e escutei um grito estridente. Meus meninos estavam em perigo. Era o gancho que precisava. Já sabia onde estavam.
Voei para a Praça Onze. Uma ferrenha briga de bate-bolas ocorreu ali. O grupo de Camaleão havia vencido. Corpos massacrados ao chão. Por azar (ou por sorte) os meus três filhos queridos decidiram fazer a ocorrência sozinhos. Foram pegos. Agora eles estavam cercados pela horda assassina. Cem mascarados aproximavam-se por todos os lados.
Foi a cena que vi quando cheguei.
— Vamos acabar com eles. — Bradou um infeliz “cara feia”.
Trêmulos, a tríade de policiais apenas apontava suas armas a esmo. Os mascarados começariam o ataque. Júlia abraçou Vitor. Dutra correu para frente dos dois colegas e disse: — Eu sempre te amei Júlia. Não posso deixá-la morrer.
Camaleão tirou sua máscara. Gritou: — Você vai perecer primeiro.
Os policiais atiraram e alguns patifes caíram no chão, mas logo outros chegaram. O trio não aguentou por muito tempo: Júlia escorregou das mãos de Vitor, que caiu empurrado para longe, enquanto Dutra era esbofeteado por Camaleão. Eles estavam prestes a morrer.
Mas é carnaval. E os heróis do carnaval não podem morrer.
Era hora de eu entrar em cena mais uma vez.
Assobiei meu apito. Todos pararam com a estridente alarida. Minha surpreendente aparição demorou alguns segundos e revelou-se recheada de fumaça branca, cinza e lilás. Numa nuvem cintilante eu aterrissei. Olhos amedrontados viram-me sem saber o que ao certo estava acontecendo. A sombrinha fulgurada cegou os olhos dos impuros. De minha mão direita joguei meu perfume com cheiro de cereja, morango e mel para proteger minha prole. Da esquerda atirei meu jato de purpurina iluminada para paralisar os terríveis algozes. Primeiro salvei Júlia dos trastes que tentavam estuprá-la. Cortei-os ao meio. Depois fui salvar Vitor e dilacerei as vísceras e as tripas do grupo que estava tentando cortar seu pescoço. Por fim, coloquei finalmente minhas mãos em Camaleão. Peguei-o pelos pés antes que matasse Dutra e o alcei aos céus e, lá em cima, eu tirei minha máscara e mostrei a ele a verdadeira face mortal. O pilantra gritou como um rato imundo. Covarde! Caiu no chão destroçado. Por fim, o vendaval vindo de minha capa fez desaparecer todos os destroços.
A caçada terminou. O demônio jazia no inferno. Agora as ruas de minha Pequena África estavam limpas. Salve as minhas Tias Baianas!
Desapareci.
Os meus três heróis? Dormiram como anjos. Depois, acordaram e voltaram a DESCA. Não falaram nada do que viram. Eram meus cúmplices. Receberam, naquela noite mesmo, uma bronca e uma folga do chefe bonachão.
*
Quarta-Feira de Cinzas. No dia da apuração minha escola foi a campeã. Já sabia! Todo o povo foi para as ruas. Mas logo o grande palco se esvaziou. A Avenida Marques de Sapucaí se desfez e a luz se apagou.
Um sol colorido surgiu nos céus da cidade monstro. Por mágica meus três protagonistas apareceram fantasiados num sambódromo delirante. Júlia, minha musa, estava andando na frente, bem-humorada, contente. Usava um belo vestido alegre de variadas cores. Era a minha colombina. Dançava e beijava Vitor que veio ao seu lado, espirituoso e feliz usando uma sofisticada roupa coberta de polígonos multicoloridos. Era o meu arlequim. Atrás deles, triste e desconsolado, Dutra, com uma roupa clara e larga, seu rosto pintado de branco com uma lágrima preta desenhada abaixo dos olhos. Era meu pierrô.
No fim, só restaram três, sozinhos, numa Apoteose do Samba utópica e infinita. Então eles sambaram e brincaram e pularam como seres etéreos, imortais, eternos.
O carnaval estava salvo.
Por isso, hoje, eu saio de cena. Mas eu estarei sempre aqui. Como um guia. Uma sentinela. Protetor inconteste de toda a festa. Vou atrás daqueles que tentarem zombar de minha farra sagrada. Salve os entrudos, as tias e os ranchos. Eu sou o verdadeiro rei dessa folia. Eu sou o Grande Clóvis.
E você! Já aprendeu a sambar?
Então tome muito cuidado, meu amigo. Seja honesto e justo. Caso contrário, eu volto no próximo carnaval para te pegar.
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Conto que faz parte da antologia NINGUÉM LEVA A MAL - Editora Euedito (Portugal) - 2017