O BRILHO DA MALVA CRISTAL NEGRA
Presto Benevides Mendes estava temeroso. O jovem vendedor de passagens deslizou as mãos pela testa suada. Era meio-dia. Já havia consumido o primeiro turno do seu trabalho. Faltavam, agora, apenas algumas horas para o fim derradeiro. Pensou. Através da vidraça transparente de sua saleta, ele contemplava o galpão de embarque lotado. Será aquele o dia final de sua vida? Tinha dúvidas. Será que a empresa iria levá-lo? Não sabia. O atendente ajeitou a gola de seu macacão verde fluorescente. Olhou para o equipamento central de ventilação fotovoltaico que continuava emperrado. Será que seus pais e sua filha estariam já embarcados? Não imaginava. No salão de espera, centenas de pessoas refrescavam-se com os ventiladores carregados pelos drones da empresa. A agonia era interminável. Ao final daquela manhã, ele acionou, mais uma vez, no gerador de senha.
A luz verde do painel holográfico, no meio do galpão, acendeu.
2.340 / Saleta 07
Enquanto esperava, Presto observou aquela mesma criança dos outros dias sentada numa das poltronas do galpão. Um garoto franzino, moreno escuro, com cerca de dez anos de idade, que não possuía as duas pernas. Ele vestia o mesmo manto branco e novamente carregava consigo aquele vaso com uma flor esquisita. O vendedor fixou sua visão no pequeno, na planta e seu pensamento vagou indelével. De repente uma mão em seu ombro o chamava.
— Senhor! Bom dia!
— Sim.
— Somos o número 2.340. – Falou um sujeito barrigudo. Ao lado uma mulher magérrima, de cabelos loiros e olhos claros.
— Perdão! Queiram sentar-se.
— Obrigado.
— Sejam bem-vindos a MULTINAVES. Preciso de sua identidade. Por favor.
O casal acomodou-se nas cadeiras. Enquanto sentavam, o homem, com um olhar apreensivo, colocou seu dedo no leitor biométrico na mesa. Presto observou a tela à sua frente e, em segundos, um resumo simples da vida do homem apareceu no display.
— Senhor Eliseu Antunes Abrantes?
— Sim.
— O senhor vai querer passagem para toda a sua família. – O vendedor agitava um leque improvisado enquanto tocava na tela. – Só estamos aceitando pagamento em espécie, senhor Eliseu. Nosso sistema de venda de passagens online foi completamente desativado. Não se pode mais confiar nos depósitos bancários e nos meios circulantes da Terra. Certo? Principalmente depois que o sistema monetário internacional implodiu. Não é mesmo?
— Entendo. – Eliseu murmurou. Depois riu. Enfim, sussurrou para a mulher ruiva: – Eles são os únicos que fazem isso, meu bem. São a única empresa que detém esse monopólio das passagens para Gliese, meu amor. Essa fortuna toda vai ser depositada nos colhões desse planeta! Calhordas!
— Sim. Já há um sistema monetário lá. – O atendente virou-se para o casal – Bom. Finalizado. Isso posto: quatro crianças, mais uma mulher, seu pai doente e sua sogra de 120 anos vão dar sete passagens no total de 40 mil reais.
O silêncio proliferou-se pelo pequeno recinto. O homem, com semblante rude, desafinou.
— Obrigado pelas informações.
— Pois não.
— Mas eu só quero duas passagens.
— Perdão!
— Sim. Uma para mim e outra para ela.
— Entendo. Sua família já partiu.
— Não! – proferiu secamente Eliseu.
Presto olhava para os dois enquanto bebia sua água quente.
— Senhor Eliseu, as normas de evacuação dizem claramente que os cidadãos devem deixar o planeta com suas respectivas famílias.
— Ela é a minha nova família.
— Não entendi, senhor!
— Casamos ontem.
— Não pode ser! Isso é ilegal senhor.
— Veja a documentação, filho. Assinei o divórcio na quinta e casei na sexta.
— Desculpe. Terei de acessar os dados mais profundos de sua vida, senhor Eliseu, – Presto plugou-se ao computador da mesa – antes de liberar sua passagem. O homem assentiu cinicamente: — Sim! Claro.
O jovem atendente acessou, de forma instantânea, os computadores ligados aos dados governamentais que ficavam fixados nos corredores subterrâneos do grande complexo. Depois de segundos checou a informação. Viu que o senhor Eliseu estava com a razão. De alguma forma, superando a severa legislação, o dito cujo tinha conseguido se separar e casar logo depois.
— Desculpe-me pela demora, senhor Eliseu. Sua documentação está correta.
— Falei, filho. Fiz tudo dentro da lei.
— Claro. Quantas passagens vai querer então?
— Duas.
— Sim, senhor. Dará dois mil reais.
— Sim. – Eliseu pegou uma sacola e entregou. – Aqui está.
— Certo. Suas passagens serão entregues no guichê 69. Tenha uma boa viagem.
O casal atravessou aquele salão de espera e embarque com dezenas de cadeiras e saletas de venda e guichês de retirada. Eliseu e sua amante atocharam seus dedos no leitor ótico do guichê 69. As passagens automaticamente foram registradas em suas células epidérmicas. Depois, encheram-se de beijos e carícias. Riram de forma cínica e desapareceram indo em direção ao setor das espaçonaves.
*
Não havia mais água potável no mundo. As represas, os lagos e os rios estavam estéreis. Secaram-se as torneiras e as bicas. Os poucos reservatórios particulares eram disputados debaixo de tiros de escopeta. A Guerra da Água se tornou inevitável. Alguns indivíduos ingeriam líquidos sujos de fontes desconhecidas. Muitos recorreram às próprias urinas. Um dos amigos de infância de Presto Mendes, o rico empresário Jean Filipe estava com sede. Numa rua de Tóquio, ele lambia as gotas de um fluido que saia do cano enferrujado de um esgoto. Morreu de doença indetectável.
O clima era sempre o mesmo. O mais quente ao dia. O mais frio à noite. Quase não havia mais camada de ozônio para filtrar a radiação solar, aquecer e proteger os terráqueos. As temperaturas chegavam aos 50 graus Célsius, pela manhã. Ao anoitecer, mais de 60 abaixo de zero. Milhões desapareceram nas regiões tropicais torrados pelo sol escaldante. A modelo Carla Mendes, prima mais velha de Presto, estava desesperada. Ela corria nua no meio da Champs-Élysées em Paris com o corpo setenta por cento queimado. Nas capitais, o ferro derretia ao meio-dia. A interminável chuva preta corroía a pele e dilacerava o coração no ácido que deforma.
A comida tornou-se insuficiente. Terminavam-se as plantações. Encerravam-se as produções. A fome alastrou-se. As geladeiras, os freezeres, os armários, as despensas, os armazéns: tudo estava vazio. Pacatos cidadãos, agora, atracavam-se por um resto podre de qualquer substância comível. Homens esfomeados perseguiam crianças e idosos para devorá-los canibalisticamente. John Beck, um primo distante da família de Presto, era um pacato cidadão e funcionário público de Londres. Sempre viveu respeitando as leis, respeitando o próximo, dentro dos costumes morais e protestantes. Esperava que um dia a providência divina fosse lhe dar uma vida boa. Deus é bom! – dizia John. Morreu cremado numa fogueira nas ruas da capital inglesa. Em Nova York, Barcelona, Nova Déli, Cairo, Buenos Aires, fogaréus eram feitos com restos de carcaças humanas.
*
Presto voltou do almoço no refeitório da empresa. Passou pelo salão cheio. Uma barulheira de vozes e gestos. Viu novamente o garotinho com seus cabelos encaracolados e sua planta enegrecida. Estava dormindo encolhido numa das poltronas de espera. Presto pensou em Brendinha: sua filha estaria com a babá no apartamento no centro da cidade à espera dos avós para embarcarem em uma das espaçonaves...
3.432. / Saleta 07
O painel holográfico reluziu.
Do meio do salão, brotou uma humilde família. Entraram na saleta. O pai, que vestia uma roupa social envelhecida e amassada, sentou na cadeira em frente à mesa. Segurava uma imagem de São Judas Tadeu. Enquanto isso, a mãe, risonha, aguardava em pé com as três crianças, uma de colo.
— Sim?
— Eu vim pra comprar as passagens pro outro mundo, seu moço. – Balbuciou o homem com seus cabelos arrepiados como arames.
— Quantas vai querer?
— Cinco.
— Precisarei de sua identidade. Posicione suas digitais no leitor biométrico aqui, por favor.
O indivíduo, carrancudo, colocou o dedão indicador no ponteiro digital. Olhava ressabiado para o atendente que analisava os dados.
— Senhor Expedito Euzébio Brasilino da Silva?
— Apois, moço. – Riu o matuto, de boca banguela e orelhas de abano.
Presto ficou alguns minutos, pensativo. Observava sério a tela de seu computador. Balançou a cabeça negativamente. Lamentou.
— Pois bem, senhor Expedito! Qual das crianças vai ficar?
— Nenhuma, seu moço. Fiz meu pé-de-meia. Eu e minha esposa. Vamos com três, moço. Viemo caminhando lá do interior até aqui o Rio de Janeiro, moço. Vimo fogo, morte e pestilências. Vimo o tinhoso, seu moço, que perseguiu nóis por muito tempo. Tamo dormindo aqui no galpão – o homem parou, olhou para o teto e depois fez um sinal com os dedos da mão – faz três meses e...
Enquanto Expedito contava a saga de sua família, o vendedor encarou as crianças. Sentiu pena e aflição. Passou a mão pelos castanhos, minoritários e resistentes fios de seu parco cabelo.
— O senhor sabe bem que não pode ir para Gliese com uma criança doente.
— É só uma gripe seu moço.
— É tuberculose. Está escrito aqui no computador.
— Esse troço tá errado, moço. – Bradou a mulher, com seus peitões fartos e sua saia longa de pano colorido. Chegou mais perto da mesa. Balançava a criança de colo.
— As normas são específicas, senhores. Nenhum tipo de vírus poderá entrar na atmosfera de Gliese. Leia o artigo 5 da Lei de Evacuação Geral – O atendente entregou ao casal um pequeno leitor digital contendo as duzentas páginas da vasta legislação.
O homem pegou o tablet e dedilhou pelas páginas.
— Entonce, mas eu não sei lê, moço. — Expedito olhava incrédulo para a imagem do santo milagreiro na sua mão – Minha esposa menos. Queremos apenas as passagens.
— Não podemos ajudá-los.
Nesse momento, a mulher ajoelhou-se na frente de Presto.
— Moço, por favor, nóis não vamo deixar nosso fio aqui. Ajuda nóis...
O pai completou: — O senhor faz isso com nóis porque nóis é pobre. – Foi em direção a sua esposa. Pegou-a pelo braço robusto e levantou-a. Esfregou as mãos calejadas em seu rosto bochechudo. Beijou sua testa – Vamos simbora daqui, muié. Esse excomungado não tem coração.
A família andava lentamente para fora da saleta. O jovem atendente fechou os olhos. Visualizou mentalmente sua filha Brenda brincando num belo jardim. Proferiu: — Droga. Não sou nenhum monstro. Talvez eu tenha uma chance de vocês irem. Deem-me a quantia aqui.
O casal retornou aos prantos. O homem desdentado entregou um saco com mais de 25 mil reais. Agradeceu inúmeras vezes. Beijou o santo. A mulher beijava as mãos do atendente.
— Tá bem. Agora escutem. A passagem de vocês será despachada no guichê para condução de cargas inanimadas e objetos raros.
— O senhor tá mangando de nóis?
— Não! Sim! Talvez! Olha, é a única oportunidade. Seu filho doente será identificado como um objeto. Assim vocês podem embarcar no compartimento de cargas. Fiquem lá e escodam a criança doente. Cubram ele com algum pano. Ninguém vai fiscalizar aquilo mesmo. É a única brecha.
O humilde sujeito deu um urro de alegria e abraçou sua família.
— Obrigado, seu moço. Mas como nóis faz agora, moço?
— Bem! Leve a sua família direto para o guichê 112. Grave as passagens nas digitais. Depois vão em direção ao fundo do galpão e passem discretamente pelas roletas especiais com a criança camuflada. Vocês chegarão na parte externa do nosso complexo, o RAMPÃO. Corram escondidos por aquela imensa planície até o setor onde ficam estacionadas as naves de lançamento. Procurem a nave Beta 539 AEC. Entenderam? Beta 539 AEC. Embarquem pelo compartimento de cargas e estarão salvos. Vão com Deus!
Expedito, já no galpão, ajoelhou. Levantou sua imagem de São Judas Tadeu para os céus: — Milagre! Milagre! — glorificava.
*
A fé se diluía pelo ralo. Religiosos, padres, pastores, esotéricos, bruxos, judeus, muçulmanos, espíritas, todos rezavam nas ruas, nas capelas, nas igrejas, nas sinagogas, nas mesquitas, nos centros. Max Schramm, um católico austríaco em Berlim, virou ateu ao ver que Deus não veio para salvá-lo. Queimou seu santuário e ateou fogo no próprio corpo. As pessoas abarrotavam as casas religiosas em busca da absolvição de seus pecados. Mário Amaral, um ateu português em Lisboa, virou crente ao perceber que, naquele instante, isso não fazia a menor diferença. Faleceu pisoteado ao tentar defender a imagem protetora de Nossa Senhora. Max e Mário fizeram intercâmbio no Brasil (dois anos atrás) e ambos ficaram hospedados na casa de Presto. Pobre Max. Pobre Mário. Cada vez mais, os seres humanos necessitavam chegar aos pés das imagens sagradas. Elas se atropelavam. Elas se estapeavam. Quilíades de fiéis corriam para as maiores catedrais em busca de abrigo e proteção. No meio dos escombros de uma rua de Budapeste, na Hungria, Patrick Brendon, um honesto pastor presbiteriano lutava de forma resistente. Ele, que batizou Presto quando criança, tentava amparar seu rebanho das garras de um demônio. Desapareceu tentando. Nos subúrbios das grandes cidades, o pecado andava lado a lado com a salvação. Na Avenida Paulista, beatas da Igreja da Sé corriam perseguidas pelas trombetas de quatro cavaleiros em seus cavalos de fogo.
A economia se desmanchava pelo ar. Não havia mais comércio fluente. Lojas, centros empresariais, supermercados, bistrôs, bares, eram cotidianamente assaltados e saqueados. Alguns comerciantes tentavam, sem sucesso, defender suas propriedades. De dentro de uma loja de doces infantis no Ceará, por trás da bancada principal, estavam Davi Ferreira (o chefe) e Ricardo Belmonte (o gerente), tios distantes de Presto. Ambos descarregavam seus revólveres em qualquer um que se aproximava. Explosões. Tiros. Incontáveis bêbados invadiam os botequins das ruas da Lapa. As boutiques estavam sendo apedrejadas. Bilionários retiraram suas poupanças, suas relíquias, jóias e fortunas dos cofres dos bancos mundiais. As bolsas de valores quebraram. Petróleo, combustíveis e soja não valiam mais nada. Iniciava-se o colapso do sistema financeiro internacional.
Miseráveis vagavam pelo mundo. Bilhões sem destino. Eram sombras que clamavam por misericórdia e perdão. Uma multidão de mendigos, indigentes, desprovidos e esfomeados que andavam a esmo sem saber para onde ir. Os humanos voltaram a ser nômades. Peregrinos no inferno. Seres errantes, sem pé ou cabeça, sem coração ou sentimento, sem rancor ou certeza! O senhor João Mendes e a dona Maria Mendes, pais de Presto, traziam consigo seus quatro outros filhinhos: Marcos, Lucas, Matheus e João Júnior. Eles não conseguiram chegar à casa do primogênito para resgatar a neta Brenda com a babá. Foram atacados no meio do caminho por um grupo que vestia batas brancas compridas e capuzes pontudos e triangulares. Morreram queimados numa cruz de madeira nos arredores da zona portuária da capital carioca.
*
4.567 / Saleta 07
Eram quase três da tarde. Presto não conseguia se comunicar com seus familiares. O garoto amputado ainda estava lá. Olhos grandes. Conversava com sua planta. O prestativo vendedor de passagens pensou em ir até lá, falar com ele. Mas o próximo cliente já estava sentado à sua frente com um sorriso fraternal.
— Willian Vander Rossi! O senhor já esteve aqui semana passada?
— Sim. – O senhor Rossi vestia um bermudão de pano, uma camiseta regata e uma sandália de dedo. – Agora trago a minha sogra. Ela está sentada ao lado daquele menino da planta feia. – Acenou para idosa – Pois bem! Hoje eu quero mandar a velha para Gliese. Urgentemente!
— Não entendi. – Argumentou o atendente – O senhor, semana passada, comprou a passagem para sua mulher. Hoje quer uma para sua sogra. Pensei até que já tivessem embarcado.
— Não! Sabe como é? Eu não vou.
— Não vai?
— Olha aqui. – O senhor Rossi falou baixinho – Serei o mais sincero possível. Não acredito nessa coisa de fim do mundo. Nessas tragédias todas que estão acontecendo aí. Acho que tudo não passa de um embuste, de uma grande farsa televisiva, das mídias internacionais. Vou pagar para ver. Não vou perder minha fazenda. Estamos no final do século XXI, amigo. Você acha que eles já não inventaram alguma tralha para acabar com toda essa baderna? Claro que sim! Eu acho piamente que eles encontraram algo de muito valor aqui na Terra e estão querendo que todos nós sejamos mandados para esse outro planeta. Quer saber! Acho que nem outro planeta existe. Por isso que eu quero que vá logo a bruxa de minha sogra assim como já foi a maldita de minha mulher...
Presto encostou-se na cadeira. Olhos esbugalhados. Em silêncio, esperava o sistema gerar o comprovante do pagamento.
O senhor Rossi saiu da sala contentíssimo. Dava gargalhadas incontroláveis...
*
A desordem povoava as cidades. As ruas e grandes avenidas ficaram amontoadas de casas, barracos e construções. Uma junção de telhas, tijolos, calhas, argamassa, madeira, barro e concreto. Em Pequim destruída, encontrava-se Sun Wang, um antigo empregado de Presto. Sun perdeu toda a sua família: três filhas e esposa. Ele estava no meio de uma praça deserta e dançava solitário, sorrindo e rodopiando, com seu terno azul rasgado, segurando em uma das mãos um guarda-chuva amarelo aberto. Demência. Loucura. Psicose. As megalópoles mundiais estavam em pedaços: Paris, Roma, Berlim, Pequim, São Paulo, Cidade do México, Tóquio. Suas construções, antes belas e faraônicas, davam lugar às ruínas. O dono de um casarão no Morumbi, o empresário Milker Soares da Rocha, amigo da família de Presto, estava sentado em seu quarto. Ele segurava trêmulo uma granada militar. Dava risadas diabólicas ao lembrar a vida de luxúria, depravação e sexo que viveu. Ele esperava os invasores que chegavam com facas e machados nas mãos para invadir seu casarão. A porta da casa estava sendo destroçada. Já derrubaram. Corra, sr. Soares!
A desordem povoava os campos. As grandes propriedades eram invadidas por gente sediciosa. Os senhores de terra tentavam defender seu pedacinho de chão. Ainda há o que se defender, mesmo perto do fim. Muitos fazendeiros, latifundiários e agropecuaristas fugiam ou se escondiam. Quando apanhados, eram torturados, violentados, humilhados, crucificados e comidos vivos em banquetes públicos. O senhor Willian Rossi (aquele da sogra) voltou para sua fazenda no interior da Minas Gerais. Livre, ele fez festa, orgias e bebeu ferozmente. Foi massacrado por psicopatas que cortaram seu corpo por completo. Sua orelha voou decepada. Eles queriam comer aquela orelha. Peguem a orelha voadora do senhor Rossi! Sim! O diabo também estava rindo! Dava gargalhadas incontroláveis.
*
No holograma: 5.976 / Saleta 07.
Já era quase noite. Presto sabia que faltavam poucas horas para o último embarque. Será que as passagens estavam garantidas? Quem saberia?
Do meio do salão lotado, surgiu um velho. Terno e gravata branca. Sapato verde. Numa das mãos, trazia uma bengala com punho de prata representando um dragão estilizado. Na outra mão, uma maleta de veludo vermelho com uma insígnia de dragão iluminada escrito Tarântula. Entrou na saleta, chegou à mesa, sentou e abriu a mala cheia de Euros.
— Quero todas!
— Ãh?
— Metade para a empresa. Metade para você. – O velho olhava para o dinheiro.
— Não entendi, senhor! Perdão!
O vetusto pegou um lenço e enxugou o rosto. Depois tossiu várias vezes. Olhou para a cara de incrédulo de vendedor e fez um bico com os lábios enegrecidos em direção a mala.
— Quero todos os lugares do vosso próximo veículo espacial e...
— Não pode!
— Pago por todas elas. – O homem encostou-se na cadeira – Metade dessa gaita é sua.
— Não!
— Olha, amigão, para onde quer você vá, daqui a pouco, precisará de uma mala dessas!
— Não podemos vender todas as passagens para uma pessoa.
— Comunique-se com seu superior. Diga apenas que se trata de TARÂNTULA.
— Preciso de sua identidade para ver seus dados.
O homem olhou para o atendente de forma sarcástica. Empunhou o dedo. O scanner leu...
— Impossível. Não há informações nos dados biográficos governamentais.
— Comunique-se com seu superior. – Repetiu o homem de idade já avançada – Diga apenas que é o TARÂNTULA.
Presto plugou-se à mesa. Fez contato com o gerente da empresa. Escutou, além de uma sonora bronca, a afirmação positiva de que poderia vender todas as passagens para o ancião.
— Desculpe o mal-entendido.
— Claro.
— O senhor poderá pegar as suas três mil passagens no guichê ao lado.
O velho proferiu um enigmático sorriso. Ponderou finalmente: — Obrigado, meu amigo. Não se assuste. É assim que acontece nesse mundo, e é assim que acontecerá no próximo. Quando partir, não se esqueça de me procurar em Gliese. Tarântula é meu código. Devo esse favor a você...
O atendente colocou a grana da empresa no cofre. Guardou a sua parte na mala estilizada. O misterioso senhor saiu da sala cantando Today Tomorrow And Forever, de Élvis.
*
As criaturas estavam destruídas. Criou-se, da noite para o dia, uma população de seres mutilados, amputados, decepados, estropiados. Criaturas pernetas, manetas, caolhos, sem bocas, sem orelhas, sem nariz, sem dedos, sem pele, sem alma. Choro e lamentação. Faces pálidas, algumas queimadas, outras descascadas. Olhos avermelhados, alguns fustigados, outros com olheiras profundas pelas noites sem dormir. Na República da Sérvia, o majestoso bailarino Mikhail Malovisck, um antigo amigo virtual de Presto, estava amargurado. Lamentava o palco destruído do Teatro Nacional de Belgrado. Ficou cego e deformado com a bomba que jogaram em seu rosto. Agora representava sozinho, com leveza, harmonia e simetria, o último ato de The Sleeping Beauty. Bailava sem parar, até a exaustão numa verdadeira dança da morte.
A poluição era interminável. Havia um constante cheiro de podridão carregado pelas correntes de ar. Os esgotos e as sujeiras, o lixo, as fezes e o esterco, antes restritos, fulguravam espalhados por todo o mundo. Chumbo, cádmio, mercúrio, cromo e arsênio: os solos e o lençol freático estavam impuros com a propagação maciça de aterros sanitários e a extensa produção de chorume, metais pesados, pesticidas e solventes. O barulho era ensurdecedor. Por todas as partes do globo terrestre, ouvia-se um estridente zumbido, persistente e uniforme, de mais de cem decibéis, que nunca cessava, que estourava os tímpanos. Uma fumaça cinza, causadora de todo tipo de ferida, ascendia às atmosferas. Os gases poluentes, causadores do efeito estufa, intensificaram-se, provocando graus perversos de aquecimento, de ilhas de calor e de inversão térmica. Agora era preciso usar potentes máscaras respiratórias para sobreviver. Em Copacabana, uma madame raquítica e covarde, com sua bolsa lilás fluorescente, roubou a máscara de ar de uma mulher grávida, que morreu sufocada. Um tsunami infernal feito de água podre, suja e fedorenta invadia o planeta.
A saúde rastejava moribunda. As mais terríveis moléstias se espalharam. Os piores males retornaram incuráveis: peste, varíola, lepra. Os hospitais, as clínicas e as emergências não conseguiam comportar as demandas. Os remédios deixavam de ser a solução. Não havia enfermeiros, plantonistas ou anestesistas disponíveis. Os médicos estavam amotinados em suas casas. Em Roma, a Doutora Any Vincy, uma amiga de infância de Presto, não conseguia mais sair para curar seus pacientes. Ela repousava sentada em sua poltrona. Bebia um Chianti Clássico em um belo cálice de cristal estreito. Ouvia as batidas e passadas do lado de fora do seu apartamento. Faltava pouco para a quadrilha chegar à sua porta. Já entraram! Corra! Dr. Any!
*
Presto permanecia aflito. Não tinha respostas. Além disso, sabia dos milhares de humanos que se aglomeravam na Avenida Presidente Vargas, em frente ao antigo prédio da prefeitura, onde agora se situava o complexo da MULTINAVES. Uma junta, de mais de mil policiais, cercava o prédio. Outros mil tentavam acalmar aqueles que estavam em espera. Mas até quando as autoridades de segurança fariam isso? Afinal, eles também teriam que partir em dado momento.
No painel holográfico: 14.666 / Saleta 07
Foi então que Aton Roger da Silva, seu melhor companheiro de trabalho, entrou pela porta da saleta. Reverberou afobado: — Amigo! Estão todos os atendentes indo embora. A empresa deu uma hora para os funcionários embarcarem. Uma hora! Eles já rasparam os cofres. Eu estou fechando o meu expediente e indo embora agora. Você vem?
— Sim. Farei mais esse atendimento e irei.
— Sim, amigo! – disse Aton – Encontro você na nave. Até lá.
Do salão, surgiu uma senhora etérea, cheia de brincos, colares e joias pelo corpo. Perfumada, maquiada e magricela. Trazia, numa das mãos, uma máscara de ar. Na outra, sua bolsa lilás fluorescente. Sentou.
— Por favor, querido, tenho pressa.
— Identidade.
— Sim. – A mulher, com um sorriso azedo na boca, enterrou o dedão no leitor.
Barulho e apreensão. Janelas quebradas. Presto observou que o grupamento policial estava em retirada. Do lado de fora, a população tentava destruir a porta.
Na tela do computador, emanaram as informações de Eleonora Filomena Montes, dona de uma instituição com mais de cem crianças órfãs.
— Cadê suas crianças? Dona Eleonora.
— Estão na creche. Ficarão lá.
— Como assim?
— Não há espaço para elas no nosso novo mundo.
Presto olhou com cara de poucos amigos para a madame. Novas bombas e barulho de vidraças quebradas. A criança sem pernas meditava em meio ao povaréu dentro do galpão. Sua planta se tremulava em um tom roxo e azul.
— Elas não têm nenhuma doença. Poderiam estar nas naves como todas as outras.
— Sim. Mas não devo explicações para você. Dê-me as passagens e pronto.
Nesse momento, uma explosão arrebentou a porta de entrada do galpão.
— Não!
A velha levantou. Foi em direção à mesa. Pegou o jovem pela gola da camisa.
— Dê-me a minha passagem, seu babaca. Eu sou uma pessoa rica e poderosa.
— Não!
Eleonora soltou o atendente.
— Agora você vai me dar as passagens, seu magricelo imbecil. – Ela abriu a bolsa e pegou uma arma calibre 38 – Ou vou atirar nesse seu coração sem sangue.
Em tempo, a aglomeração entrou pelo galpão. As pessoas começaram a correr desesperadas. Com o barulho e o susto, dona Eleonora deixou sua arma cair no chão.
Foi o tempo de Presto reagir. Ele empurrou a velha que tombou desmaiada. Depois saiu de sua saleta. Levou junto consigo a mala estilizada cheia de Euros. Foi em direção ao garoto sem pernas. Agora faltavam apenas alguns minutos para a sua cosmonave ir ao espaço.
O povo marchava aos berros:
— Queremos as passagens!
— Queremos as passagens!
*
Sexo. Coito. Luxúria. A volúpia explícita era improvisada por gente diversa: vivo com vivo, vivo com morto, morto com morto (ops!). Depravação e sadismo eram feitos à luz do dia. Ninguém respeitava mais ninguém. Homens abusavam de seres desarmados. Mulheres violentavam criaturas desprotegidas. Alguns espertinhos se aproveitavam da situação. Doenças sexualmente tranmissíveis alastraram-se: gonorreia, sífilis, bubão, tricomoníase, herpes genital, crista de galo, candidíase, clamídia. Morria muita gente. Mas nascia também. Os métodos anticoncepcionais mais avançados não eram mais usados. As mulheres pariam a céu aberto. Os bebês nasciam com aberrações, mutações e anomalias. Brotavam jorrados das vaginas de suas próprias geradoras. Numa viela do Uzbequistão, nasce já morta a décima filha de Verônica Petrina: com três cabeças, quatro pernas, cinco mãos e duas bocas. Verônica chora. Na sua mente, uma lembrança distante de seu sobrinho Presto Mendes...
As guerras eram devastadoras. Novos aparelhos tecnológicos foram inventados, mas apenas para a destruição. Revólveres, escopetas, metralhadoras, canhões, bazucas, mísseis, armas de laser, eram usados, indefinidamente. Bombas atômicas, de hidrogênio, de nêutrons, foram jogadas em várias partes do globo. A radioatividade se alastrava. Mas as munições acabavam e o espírito enfraquecia. Os policiais e os guardas civis abandonaram seus postos. Os exércitos nacionais recuaram. Enfraqueceram-se, perdendo seus homens. Militares desertaram a fim de salvarem suas próprias famílias. Numa esquina de Kiev, o jovem fuzileiro do exército russo, Dimitri Rybakov – outro amigo virtual de Presto – caía ajoelhado. Chorava ao abandonar o campo de batalha. Dimitri tirou a própria vida.
O sistema político se corrompeu. As constituições dos países democráticos foram rasgadas. Era um planeta sem lei. As nações desapareceram usurpadas por conquistadores vindos a cavalo, vestidos com armaduras de ferro fundido, portando facões, espadas e martelos. Populações inteiras foram dizimadas. Genocídios eram cometidos ao longo dos dias. Um homem, com seu bando de mil cavaleiros, reconquistou a Europa, criou um feudo gigantesco e proclamou-se Napolelão IV.
Os fenômenos naturais tornaram-se incessantes. Sucessivos furacões, terremotos e maremotos infestaram o que sobrou da sobrevida humana. As florestas desaparecem com queimadas, fumaça e fogo. Os animais corriam, gritavam, sumiam. Não havia escapatória. Grandes mutações se sucederam. Mosquitos gigantes aniquilavam com uma só picada. Ratos voadores colossais roíam cérebros. Baratas de cinco metros comiam pelancas. Moscas varejeiras sugavam estômagos. Ao acordar dentro da saleta destruída, dona Eleonora viu-se rodeada por insetos mutantes que vagarosamente devoravam seu corpo detestável. Morra! Dona Eleonora. A besta fera estava solta.
Em algum ponto imperceptível de sua história, os seres humanos perderam o rumo e o controle sobre a vida. A sociedade se desestruturou. A lógica de toda a civilização chegou ao fim. O que sobrou foram bilhões de seres batalhando de forma animalesca.
Na Avenida Chile, em frente à Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, está Brendinha. A filha adotiva de Presto, de seis aninhos, de cabelos castanhos e lisos, chorava com medo. Patrícia, a babá, morreu ao tentar defendê-la. Brendinha agora estava sozinha: olhos vermelhos de quatro patas chegavam para pegá-la. Olhos verdes com duas pernas também.
*
Milhares de seres humanos lutavam para irem ao RAMPÃO, o setor das naves estacionadas. Olhando tudo, com tranquilidade, o pequeno sem perna levantava sua planta à espera de alguém que a pegasse. Foi quando Presto chegou com sua mala cheia de Euros.
— Tudo bem, menino?
— Sim.
— Como se chama?
— Eu não sei. Chamam-me de “menino da planta feia”.
— Ela não é feia.
— Sim. Ela é uma malva negra feita de cristais.
— Tudo bem. Agora vamos tentar sair daqui. Ok.
— Não. É melhor levar somente a flor, senhor.
— O quê?
— Sim! Ela terá mais sorte no novo mundo. Caso seja salva por um coração honesto, brilhará intensamente e levará fertilidade, abundância e cura para todos.
— Tá certo, amiguinho. Mas eu prefiro levar você também.
O atendente colocou o menino no ombro. Os dois correram apressados.
A população adentrou o RAMPÃO. Destruiu as catracas. Passou por cima das portas e das placas de aço reforçadas. Começou-se a correr em direção ao último veículo espacial. Os policiais usariam a força bruta. Não! Não haviam mais policiais, militares do exército ou seguranças em nenhum lugar. Eles já tinham embarcado em suas respectivas naves.
Nesse ínterim, o vendedor e o garoto passaram por um atalho no subterrâneo do complexo que só os empregados conheciam. Apareceram em uma abertura no chão, a cem metros de distância do povo em delírio. A dupla viu o céu enegrecido. Sentiu o ar poluído, a fumaça e o fogo.
O tempo já havia se esgotado. Turbinas ligadas. Portas e escotilhas fechadas.
Foi quando Presto ativou o seu sistema interno de comunicação. Falou com a Aton.
— Por favor, meu amigo. Vai lá para baixo e abra o compartimento de carga de animais. Eu vou jogar o menino pra você. Pega-o com aquelas cordas que prendem as jaulas vazias.
— Como? Você não vem?
— Não. Preciso ir atrás de Brenda e de meus pais. Não tive contato deles ainda. Não tive confirmação da entrada deles em nenhuma nave.
— O que vou fazer com essa criança?
— Quando chegar em Gliese, – esbravejou o atendente – procure por um velho chamado Tarântula. Entregue o menino a ele, junto com a mala. – emocionou-se. – Cuide do garoto e – murmurou com olhos mudos – plante a malva negra com ele...
Explosões.
Vapores.
Tempestade.
O bafo quente da horda irracional jazia nos calcanhares.
— Taran o quê?
— O nome tá escrito na mala. Diabo! Vai lá pro compartimento de animais...
— Não sei se consigo. – Hesitou Aton – Tenho medo de bicho.
— Aton! – berrou Presto – abra aquela maldita porta!
O corajoso vendedor correu com a criança no colo. Em determinado momento, achou que não daria certo seu plano. Já estava perdendo as esperanças. Espera! A entrada do compartimento de carga deslizou para os lados e começou a abrir-se. Era Aton destravando a escotilha e jogando a corda.
A turba estava atrás deles, a segundos de distância.
O céu e o restante do mundo desabavam.
O pequeno segurou sua malva de cristal com coragem. O atendente chegou o mais perto possível da espaçonave, que subia vagarosamente. Ele amarrou a mala estilizada no peito do garoto. Enlaçou-o na corda. Gritou: — Vai!
Aton içou o menino.
Presto caiu, rolou. Acabava de ser brutalmente pisoteado. No chão, de barriga para cima, o herói cultivava feridas letais pelo corpo. Chorando, ele observou a fumaça das turbinas. Acreditou que sua família e sua filhinha tinham embarcado. Observou Aton que segurava nos braços aquela acanhada criança, que ele mal conhecia. Riu. Esticou as mãos para o alto.
Um segundo antes da nave sumir no firmamento.
Pela janela, o menino sem pernas de um tchau emocionado. Não viu o derradeiro fim da espécie humana. Mas imaginou, exitoso, que haveria esperança e paz no novo mundo.
Pois sua flor, sua linda malva cristal negra, cintilava viva em suas mãos.
____________________
Conto que faz parte da antologia O Último Gargalo de Gaia: Distopias, Steampunk e Dias Finais - Editora Lendari - 2018.