DO TEMPO DOS HOMENS BICUDOS
Nunca achei a seriedade um problema grave. Não sendo fruto de tristeza, mas sim de uma postura, de uma posição, não vejo incômodo. Penso que o fato de ser sério ou sisudo não traga para quem cultiva tal predicado uma desesperança. Ao contrário. Acredito que repleta de amorosidade e temperança a tal severidade possa trazer o amor zeloso.
Foi assim que aconteceu conosco, com nossa família e principalmente com papai e seu tremendo bico! Sim! Papai era um daqueles homens fechados, carrancudos, que trazia consigo um gigantesco bico na cara aranhada.
Explico. A situação ocorria toda vez que acontecia algo de ruim. Ou um fato que o incomodava sobremaneira, o que era constante e não menos quotidiano. Nesse momento, o bendito contorcia os lábios juntamente. Depois, de forma convergente, ele distendia os dois beiços, superior e inferior, que, ao mesmo tempo, brotavam da boca para fora de modo tão singular e exagerado e de maneira tão abrangente que formavam uma protuberância. Um senhor bico.
Mamãe não ligava para os bicos de papai. Podia ele ficar do jeito que fosse, o tempo que fosse e a hora que fosse. Estava já acostumada. Fato que tornava a situação deveras constrangedora e engraçada. Pelo menos para mim! Pelo menos desde quando eu comecei a perceber tal maneirismo de papai quando do enterro de vovó e de toda a confusão que se causou quando alguns quiseram jogar uma partida de buraco no velório da velha.
O Seu Gerson era desse jeito. Foi sempre assim. Nunca ria de nada. Desculpa! Minto! O velho balbuciou uma gargalhada apenas uma vez, quando reproduziu uma piada, do jornal que lia, na sala silenciosa numa tarde chuvosa de um dia santo. Ninguém riu tamanho o espanto.
Papai era um tipo muito específico. Gostava das coisas corretas e certas. Não se animava e nem se divertia com nada. A não ser o dia da piada que já lhes contei. O jornal era a única faceta que alegrava o Seu Gerson. Da forma dele, é claro. Passava o tempo lendo o seu periódico, letra por letra, vírgula por vírgula. Entretanto, apesar dos pesares, papai nunca levantou a voz, muito menos as mãos, nem para mamãe e nem para nenhum dos seus filhos. Isso é o que importa, afinal. Por isso, eu não recrimino quem é muito cordato, fechado ou não gosta de risos e brincadeiras. A circunspeção também é um modo de viver. Ela não anula a fortuna espiritual de ninguém.
Um adendo: certo dia perguntei para mamãe sobre o que ela achava disso tudo. Ela respirou fundo. Pensou! Depois me confidenciou: os irmãos dele, meus tios, também faziam o mesmo bico e isso não era ruim, pois eles todos eram homens muito bons e que no fim essa cara sisuda deles era, segundo mamãe, apenas uma mania do tempo dos homens bicudos.
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Conto que faz parte da antologia Olhar Bilateral - ACIMA/Sahar Editora (Itália) - 2017.