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O BEIJO CALIENTE DA MORTE

22 de setembro de 2070

 

Querido,

 

Não se desespere. Eu estou bem!

 

Escrevo não apenas para lhe expor que ainda o amo como também para lhe informar sobre minhas atuais condições e justificar as minhas escolhas, apesar de eu mesma saber que você já conhece o modo como tudo aconteceu. Impossível não lamentar tamanha desgraça! Impossível não chorar de raiva diante de toda a miséria de nossa sociedade decadente. Caímos, enfim, naquela funérea noite.

 

Oh! Meu querido Vinny!

 

Não sei exatamente onde estou nem se estas meras digitais chegarão ao seu encontro, ao seu destino ou a qualquer pessoa fora destes muros tão límpidos e cristalinos, fora destas paredes brancas de cristal fluido, aí fora, onde quer que você esteja. Por sorte consegui estas telas de uma enfermeira justiceira e esperta e espero que ela cumpra o prometido e estregue estas digitais a você.

 

Meu amado! Sabe aquele olhar? Aquele que todos adotam quando estão pensando profundamente em algo distante e longínquo na memória! Acho que deve ser esse o olhar que se encontra em minha face, ao redor das retinas verdes que ainda brilham ao pensar em você e no quanto as adorava. Causa-me certa estranheza, sem dúvida, estar aqui nesta sala hospitalar sob os auspícios do governo real.

 

E nós que lutamos tanto contra ele (risos!).

 

Será que você se lembra, como eu, tão claramente, daqueles momentos todos? Não foi isso que me disse naquela última conversa que tivemos mergulhados nas placas de ferro e aço dos telhados da Butique do Sul? Ainda me recordo do cheiro da rua, do cheiro da fumaça do alto do prédio, da sujeira das paredes, das intermináveis batalhas contra as tropas do exército real. Ainda se lembra?    

 

Lutamos tanto contra todas aquelas incertezas. Não é? Divertíamo-nos com tudo aquilo. Não é? Eu realmente me irritava facilmente, você tinha razão, na maioria das vezes com coisa miúdas e besteiras intermináveis. Hoje eu vejo que o límpido uso da água não seja tão mais importante que o prazeroso uso da honra ou a certeza de ter o contato direto de nossos corpos enlameados. Quanto tempo perdi longe de você! Não é?

 

Até que, naquela noite, eles chegaram!

 

Não lembro bem como tudo aconteceu, mas foi logo que você saiu, chateado que estava com minhas birras, com minhas manhas.

 

Ainda quer se casar comigo?

Depois que deixou o Clube, eu me vi numa solidão em meio ao salão lotado de pessoas. Pedi um martíni. Aquele que sempre pedíamos! Bebi o primeiro gole! Notei certo frisson na atmosfera do ambiente à meia luz. Algo se mexeu. Vi uma janela da parte de trás estourar e cair no chão. Não dei importância a isso na hora, mas um segundo depois alguém deu um grito de terror nefasto. Não acreditei, mas estávamos sendo atacados pelos drones da polícia política do governo real.

 

O susto do minuto subsequente fez as pessoas pararem de dançar. A música, que tocava alto (um tipo de techno dance) calou-se, de repente. Olhei assustada para o meio do salão. Uma explosão estourou a claraboia do teto, que caiu em cima dos dançarinos de pole. A multidão começou a gritar enlouquecida. Eu permaneci imóvel, como que paralisada, tentando entender a situação até dar-me conta do que realmente estava acontecendo, o pior dos nossos medos: o nosso Clube estava sendo invadido pelas tropas reais. Eles tinham descoberto nossa última morada, nosso bastião, nossa bastilha, onde as fantasias se tornavam realidade. Uma fumaça branca espalhou-se pelo ambiente iluminado só com as luzes de LED. Quando dei por mim ainda segurava o copo de martíni sentada à mesa.

 

De súbito vi algo se aproximando na minha frente. Andava ou flutuava (não me lembro!), como um fantasma demoníaco vindo direto ao meu encontro. O olho demorou para focalizar o objeto impassível, mas depois com uma certeza impiedosa e um medo precário observei um daqueles gigantescos drones robôs, revestido que era com aquele metal preto brilhoso. O ser colossal emergiu como um espectro de dentro da teia de fuligem e fumaça que dominava o recinto.

 

Deveria ter lutado com ele!, você certamente deve estar dizendo agora. Mas sem minhas armas (que insisti teimosamente em deixar em casa) eu estava indefesa e desprotegida. Minha reação primeira foi jogar o copo de martíni na direção do mostro oblongo e pular para baixo da mesa enquanto levava uma saraivada de balas mortais revestidas de dardos de sono profundo. Me arrastei pelo chão sedoso e a essa altura a minha peruca colorida, que escondia meu couro cabeludo careca e liso, caiu e a saia curta e as vestimentas do show se rasgaram, destruídas.

 

Tanto dinheiro que gastamos com os preparativos!

 

No meio da correria de pessoas e robôs assassinos do governo, que já infestavam todo o recinto, eu corria desesperado por debaixo das mesas agarrando e perpassando as hastes dos pés enferrujados. Zuni desesperado pelo palco em chamas e pulei por cima da escada de incêndio que dava para o telhado. Dezenas de tiros de dardos passavam rentes pelo meu corpo já quase nu, apenas com roupas íntimas.

 

Cheguei ao telhado e a maioria do pessoal do Clube já estavam lá. Na pressa, não vi Charlott, Welber e muito menos Catarine. Por Deus! Não sei o que aconteceu com eles em toda aquela confusão. Será que estão aí com você, Vinny?

 

Você me perdoa pela última conversa que tivemos?

 

Todos corriam para pular para o outro prédio. A fúria das máquinas assassinas do governo queimava os corpos que viam pela frente. Alguns conseguiram pular e fugir, felizmente. Mas fui uma das que não conseguiram. Tentei jogar as crianças e os menores para o outro prédio. Consegui salvar todos e, antes que pudesse tomar impulso e me precipitar, senti uma fisgada nas minhas costas. Era aquele vergalhão de três pontas que eles usavam para fisgar a presa. Tinham me pegado. Houve um choque, meu coração foi a mil por hora e de súbito houve um forte repuxo que me fez voar para trás e bater de encontro ao que eu acreditava ser uma parede. Ao meu redor uma miríade de toras metálicas se elevou do chão sobre minha cabeça e em um instante eu estava preso numa cela energizada com grades de metal suspendidas pelas drones do governo. A partir daí só me lembro de sombras e aspectos borrados e uma mistura de vento e som, pois estava voando a quilômetros do chão e a milhas por hora, sendo sacolejada dentro da cela de forma anormal e animalesca. Voei por horas. Vomitei! Senti-me enojado e tonto.

 

Vi toda a urbe com seus brilhos coloridos.

 

A cidade foi nossa um dia!

 

Desmaiei.

 

E foi assim que acredito ter vindo parar aqui. Não quero me alongar. Não posso usar muitas páginas devido à bateria curta das folhas que consegui arranjar.

 

Fique em paz. Não tente me responder.

 

Escreverei novamente quando puder.

 

Amo você.

 

ACS

 

 

 

1 de novembro de 2070

 

Querido,

 

Muito tempo desde a última vez que armazenei os arquivos digitais. Peço perdão centenas de vezes, Vinny, meu amor! Talvez por medo, por essa minha insistente falta de convicção, não tenha escrito antes. Oportunidades não faltaram. Isso eu lhe garanto.

 

Há aqui, entre os enfermos, médicos e enfermeiros, toda uma rede clandestina e sofisticada (que aos poucos eu estou conhecendo) de utilização de tecnologias de comunicação online de certos objetos móveis que são proibidos pelos estatutos do hospital. Fazemos alguns serviços especiais em troca do uso dessas tecnologias. A maioria das pessoas aqui usa a internet, consome, joga, ganha dinheiro, realiza suas fantasias sexuais e sentimentais. Eu prefiro escrever-lhe estas cartas digitais!

 

Soube apenas hoje que estou internada no prédio anexo do DCNO, ou Departamento de Cirurgias Neurológicas e Ortopédicas, como eles chamam este lugar. Posso adiantar que, tirando a falta de educação e sensibilidade de alguns outros enfermos, se assim posso chamá-los, a falta de cuidado de alguns médicos estúpidos e de algumas enfermeiras nojentas e arrogantes, o restante do pessoal é gente boa.

 

Todo o complexo predial é completamente impecável. É um oásis numa terra destruída! Sim! Para minha surpresa o hospital é meticulosamente limpo. Não há um pingo de sujeira ou poeira pelos corredores, pelas salas, pelas camas. Os lençóis e edredons de um algodão macio e sedoso são trocados e limpos todo o dia, de hora em hora. O cheiro me lembra rosas do campo. A comida é ótima, de gosto maravilhoso e variada: vários frutos do mar, como camarão, salmão e lagostas à vontade; carnes como filé mignon e picanha; saladas coloridas das mais diversas; frutas das mais brilhosas dentre maçãs, peras, uvas e kiwis. Bebidas como refrigerantes e sucos naturais de fruta. O refeitório exala essências de crisântemos. O lugar também oferece a água que acredito ser a mais limpa e bela que já bebi em toda a minha vida. Lembro o quanto lutamos e guerreamos pelos nossos filhos e filhas, para que tivéssemos um pingo de água límpida e sem contaminação!

 

Os quartos e todo o prédio têm paredes transparentes, de uma tecnologia para mim desconhecida, de forma que podemos ver a todos, e todos que estão de fora podem nos ver. Isso em cada momento do dia: na hora de dormir, quando trocamos nossas roupas, quando tomamos banhos, quando se faz sexo! etc. Foi difícil me acostumar no início com olhares e gestos e bocas e caras rindo e debochando, ainda mais quando se é uma branca azeda e magricela como eu. Mas depois chegam novos enfermos e as atenções e os olhares mudam de foco.

 

Dos quartos também podemos ver o ambiente bucólico e esverdeando do lado de fora do prédio, repleto de árvores em forma de pinheiros alongados e com uma coloração viva e esverdeada como há muito eu não via. Aqui existem bosques com todo tipo de animais silvestres e cachoeiras artificiais lindas e lagos de água perfeitamente cristalina onde podemos tomar banho nos dias ímpares.

 

De lá de fora os drones do governo também podem nos ver a todo instante. A observação aqui é a arma do controle absoluto, é realizada de todos para com todos e a todo o momento.

 

A luz que ilumina o ambiente é toda natural e entra por todos os lados. À noite existe luz também, artificial, de tom sempre lilás, apenas nos corredores e nas pontas das paredes, mas até agora não consegui entender sua procedência. De madrugada, quando estamos dormindo, os drone brancos sobrevoam as camas iluminando nossos corpos com uma luz esverdeada, num escaneamento repetitivo e constante.

 

Isso é tudo o que eu tenho de para lhe contar sobre o ambiente!

 

Mas o motivo desta carta é outro: contar a trágica e nefasta notícia que recebi quando da visita à minha cama do médico neurocirurgião responsável, dr. Amathias! Minhas dúvidas e meus medos foram confirmadas. Há mais ou menos três dias ele veio falar comigo e deu-me a infeliz informação de que farei o transplante de cabeça e portanto de cérebro, que será substituído por um outro no próximo mês, talvez no início de dezembro.

 

Isso mesmo, meu querido! Mudarão minha cabeça e meu cérebro!

 

Não sei o que pensar! Não sei como escapar!

 

Mas não se desespere! Realmente eu tinha razão, mas essa informação foi um baque para mim também. Todas as certezas que eu tinha (nas nossas conversas nos bares e no Clube, quando você insistia em negar e não acreditar no que eu dizia) sobre a veracidade dessas operações se confirmaram. Eles realmente fazem tal operação nos presos políticos. Mas dizem os enfermos mais velhos que nem os próprios médicos sabem se esse procedimento é correto ou se há possibilidade de sucesso.

 

Como Canavero e Xiaoping fizeram na China em 2017 com Spiridonov, os médicos daqui farão comigo, assim como já fizeram com os outros. Primeiro, pelo que entendi, eles transplantarão minha cabeça para um corpo que dizem eles ser mais saudável e imune ao que chamam de degenerações filosóficas e políticas da alma. Minha cabeça será esfriada para desacelerar a degeneração celular. Depois uma máquina (cujo nome não lembro) ligará as artérias e manterá o fluxo sanguíneo. A espinha medular será seccionada de forma limpa com uma lâmina de diamante, aplicando-se uma força de apenas 10 Newton. Foi assim que o médico explicou! Depois a medula será ligada ao novo corpo usando micropartículas selantes de polietilenoglicol para a fusão dos tecidos conjuntivos e celulares. Por fim, eles religarão todos os outros nervos e veias da cabeça.

 

Após essa primeira operação eles farão a troca dos cérebros para garantir que minha doença não volte mais, disse o médico, com um grande sorriso no rosto. A princípio eles me deixarão em repouso profundo por 12 horas e depois, utilizando uma máquina especial, trocarão meu cérebro por um outro que considerem mais produtivo e imune a mudanças comportamentais e sexuais.

O que me assombra é a naturalidade com que o dr. Amathias fala das trocas e dessa nefasta operação. Eu não tenho doença nenhuma! Por Deus! Mas eles insistem tanto em falar disso que às vezes realmente me pergunto se estou doente!

 

Mas o que, então, sobreviverá? Eu? Meu espírito? O dono do outro corpo? O dono do outro cérebro? Eu realmente não sei! Perderei meus olhos amendoados? Tenho medo de morrer e perder você para sempre. Choro todas as noites. Continuo chorando.

 

Te amo Sempre.

 

ACS

 

 

 

19 de novembro de 2070

 

Querido,

 

Como estão Charlott, Welber e Catarine?

 

Penso sempre neles e em você, Vinny. A todo instante. Quisera eu estar aí com vocês novamente! Quanta desgraça! Penso em suicídio! Penso na morte!

 

Penso também na fuga.

 

Isso mesmo. Fuga. Fuga. Fuga.

 

Desde aquele dia fatídico em que o dr. Amathias falou comigo que essa ideia da fuga não sai de minha cabeça. Por isso entrei em contato com os mais antigos e cruéis chefes das redes clandestinas do hospital. Tive que me sacrificar. Muitos favores foram trocados...

 

Assim consegui entrar numa rota de fuga.

 

Então, numa dessas noites, um dos hackers infiltrados no serviço de segurança policial do prédio desativou os drones e nós, num total de 100 pessoas, entre meninas e meninos, homens e mulheres, conseguimos sair da ala neurocirúrgica e correr com nossas roupas íntimas coladas aos corpos marcados por uma noite sombria.

 

Descemos pelos esgotos límpidos e cristalinos dos subterrâneos do prédio anexo com a certeza de que conseguiríamos alcançar a cidade mais próxima dentro de duas ou três horas. Mas alguma coisa saiu errada nas nossas previsões. De alguma forma fomos descobertos pelas tropas de contra-ataque policial do governo, que mandaram centenas de drones de destruição em massa. Ali, nos subterrâneos de paredes brancas e alaranjadas, as máquinas infernais começaram um massacre sem piedade e bombardearam os esgotos com bombas de gás venenoso e artefatos explosivos destruidores.

 

Nessa hora pensei na nossa vida e ilustrações perpassaram minhas retinas, as cenas de nossa jornada e o que passamos juntos. No nosso casamento, que eu insisti em marcar por medo de perder você! Tola, eu! Nas minhas reminiscências, na psique fluida das lembranças ainda não apagadas, ou tolhidas, abrolharam as efígies das temporadas áureas de luta nas vias da cidade diante das tropas do impiedoso governo. Experiências avivavam-se no seio de nossas ardentes cenas de amor nos esconderijos encardidos em meio às balas e barulhos das explosões erráticas. O tatear de nossos corpos nus nos esconderijos infinitos, entrelaçados para o sexo animalesco diante do fio da navalha da vida. O gozo total, o prazer torpe, o encanto feroz que nos vigia através do sangue da aniquilação sempre à espreita. A adrenalina ativa e sóbria diante da sensação apavorante do beijo caliente da morte.

 

Lembro que, quando da primeira explosão nos esgotos, puxei dezenas de outros jovens ao meu encalço e subimos pela primeira escotilha que estava bem acima de nossas cabeças. O chão e todo o subterrâneo ao nosso redor explodia de luzes e fumaças mortais. Por sorte ou por azar a escotilha abriu de primeira e, quando saímos, pulverizamos nossas retinas com o sol abrasador que nos cegou repentinamente.

 

Um silêncio precipitou os sons metálicos das armas dos drones de assalto que, na nossa frente, começaram a atirar aleatoriamente, matando um após o outro. Nessa hora o desespero nos encheu a alma e corremos, gritando e pedindo socorro em vão. A misericórdia de um Deus que parecia ter abandonado! Sem que pudesse respirar, pois já não alcançava o ar, estanquei no chão de grama molhada, caí e senti o cheiro da lama fresca entrando pelas minhas narinas. Dizem que fui a única sobrevivente da chacina. Não sei ao certo o porquê. Talvez por causa da operação. Talvez por sorte ou azar. Talvez já esteja morta! Aqui é o paraíso?

 

O certo é que devido à fuga fui punida e fiquei presa por cordas invisíveis que esticavam meus braços e pernas num local que eles chamam de Espiritorium. Lá não há transparência e as paredes são todas pintadas de um tom metálico, prateado e viscoso. O ambiente se destacava como uma cela minúscula, porém recheada por uma espécie de líquido gosmento e branco com um cheiro azedo. O líquido caía em gotas de buracos nas paredes e no teto e me cobria todo o corpo até o pescoço.

 

Acho que fiquei ali por uma semana. Mas depois voltei ao meu quarto e para minha cama e agora estou aqui lhe escrevendo. A tristeza me consome a cada instante. Acho que não verei mais ninguém. Meus amigos, como estão? Se ao menos você pudesse responder.

 

Te amo infinitamente.

 

ACS

 

 

2 de dezembro de 2070

 

Querido,

 

Soube há pouco que a operação será hoje. Não quero morrer!!! Gostaria de ver você mais uma vez, Vinny. Uma última vez! Gostaria de dançar aquela nossa música. De beijar aquele nosso beijo. De estar naquele nosso espaço. Gostaria de rever meus amigos Charlott, Welber e Catarine. Mande um beijo para eles. Eu amo-os também.

 

Gostaria de fazer aquela viagem ao espaço sideral como sempre sonhamos.

Peço a Deus que eu ainda o reconheça quando voltar e tudo finalmente terminar.

 

Há escapatória para essa ciência?

 

Que Deus me ajude!

 

Te amo eternamente.

 

ACS

 

23 de Fevereiro de 2071

 

 

Caríssimo,

 

Perdoe-me por não saber mais quem você é ou do que se tratava nossa relação anterior. Um membro da rede clandestina me informou que eu sempre mandava digitais para você antes da operação. Mas como saber a verdade se todos os arquivos da memória são apagados? Não tenho noção do que tratávamos, pensávamos ou conversávamos. Não lembro de mais nada. Acredito que não seja uma boa pessoa para mim, caso contrário eu me lembraria de pelo menos uma cena. Por isso, só queria que soubesse que ainda estou viva, seja lá quem você for, estou bem agora e peço encarecidamente que se afaste de mim. Talvez esta pequena digital lhe traga conforto e esperança. Talvez não! Mas isso é tudo que tenho a lhe dizer. É tudo muito novo agora e parece que estou reaprendendo a viver e sentir. O tumor no cérebro desapareceu com o transplante. Aos poucos meus pensamentos estão retornando, as memórias de minha querida família, de meu esposo e de meus filhos que estão aí fora me esperando. Ficam aqui o agradecimento e meus sinceros votos de felicidade para os seus!

Um forte abraço,

 

Um beijo caliente.

 

Alice Carla da Silva

 

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Conto que faz parte da antologia A Máquina Consciencial: Contos de Ficção Científica - Editora Engenho das Palavras - 2019.

   

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