O BANQUETE DAS ALMAS
PRIMEIRO ATO
Meia-noite. Os ponteiros do relógio de pêndulo tiquetaqueavam trêmulos. Olhos atentos. Boca seca. Senhor Tiburcindio decidiu beber o seu vinho mais antigo: um legítimo Cheval Blanc 1947. Saboreou lambendo os beiços, que sustentavam dentes aguçados, enquanto olhava aqueles ponteiros que teimavam em tremer. Seu coração palpitava. Já era sexta-feira treze. Ele precisava ter coragem para ver novamente aqueles fenômenos. Então pegou o binóculo colorido e foi para a varanda de seu apartamento.
Céu claro. Lua cheia. Vento suave que fazia serpentear o roupão de dormir do centenário homem. Do décimo terceiro andar o senhor Tiburcindio observou um lugar que jazia lá embaixo perto da rua treze de maio. Era o Cemitério das Almas. Gigantesco, o campo-santo se estendia por dezenas de quarteirões para o lado esquerdo da varanda. Maltratado, um caos de sujeira e confusão, o local ficava em silêncio e quieto todas as noites do ano. Não! Não nas noites de sexta-feira treze. O senhor Tiburcindio sabia bem. Seu corpo inteiro arrepiou: do púbis ao dedão do pé, passando pela orelha e pelo nariz. Esfregou suas mãos. De certo modo, quando colocou o pequeno binóculo diante dos olhos, ele viu algo sobrenatural a se mover naquele cemitério.
SEGUNDO ATO
Em um dos cantos daquela necrópole colossal emergiram sinistras criaturas. Do chão de terra batido surgiram vultos, com pernas sem pés e braços sem mãos. Eram as BESTAS SERVIÇAIS que usavam uma capa preta que cobria todo o corpo e um capuz que acalentava seus olhos encarnados. Voavam sob as criptas fustigadas. Flutuavam em fumaças brancas que saiam do franco. Era uma dança macabra. E então eles pararam. Enfileiraram-se em direção ao portão principal do cemitério: uma entrada toda coberta de pedras de mármore escuras e estilizadas. Fizeram duas filas e depois se agacharam numa posição de reverência, enquanto salivavam babas ardentes à espera de sua mestra.
TERCEIRO ATO
O senhor Tiburcindio recolheu o binóculo. Olhou para a noite fria ao seu redor. A escuridão encobriu-o por completo. Friccionou as retinas. Depois, ainda incrédulo, recolocou novamente o binóculo.
No portão de entrada do cemitério apareceu um jovem homem nu. Andou calmamente entre as Bestas Serviçais enfileiradas. Em segundos transfigurou-se em um velho com uma barba cinza enorme e com asas gigantescas. Jogou suas mãos ao firmamento e gesticulou com a boca o que pareciam ser palavras profanas. Então o velho se transformou em um espectro grotesco e terrível. Um esqueleto de quase dois metros de altura que exalava de seus ossos uma fumaça preta espectral. Sua face se tornou uma caveira medonha. Olhos, nariz e boca feitos de fogo azulado. Trazia na mão direita uma foice cintilada. Era a DONA MORTE.
QUARTO ATO
O céu ao redor do lugar já não estava igualmente limpo. Nuvens feitas de luzes incandescentes avolumavam-se. O senhor Tiburcindio, apesar do medo, não tirava os olhos do seu binóculo.
As árvores do local tremulavam. Galhos e folhas secas voavam em vendaval. Dentre as ruínas e os estragos brotou brilhante, no meio do cemitério, um imenso sarcófago, plano e retangular, feito de ouro e diamantes, que se projetava para cima da superfície. As Bestas Serviçais e a Dona Morte, então, saíram da sua reverência. Perfizeram um grande círculo de mãos dadas em torno do grandioso mausoléu horizontal. Elas rodavam e rodopiavam, para a esquerda e para a direta, num ritmo que nunca parava.
Senhor Tiburcindio engoliu sua saliva. Bebeu mais um gole de seu vinho. Pensou em entrar e dormir. Não! Não queria perder tal espetáculo. Sua filha poderia aparecer naquela noite. Sem contar o fato de que ele não saberia se estaria vivo até a próxima sexta-feira treze. Seu amor e sua curiosidade eram maiores. Ele recolocou o binóculo nos olhos.
QUINTO ATO
Uma neblina moldava-se dentre as silhuetas acinzentadas das pedras e dos troncos despedaçados. Lá embaixo os seres maléficos pararam de rodar. O círculo ainda estava feito. A Dona Morte subiu na tampa de cima do sarcófago. Agachou suave e escreveu um nome em letras que pegavam fogo: VALHALA.
O túmulo começou a sacolejar. Rapidamente uma luz azulada surgiu no meio da tampa de pedra e cresceu de forma circular. Era uma esfera escura por dentro e rodeada por uma chama esverdeada por fora. Era um portal que fazia referência à lendária Valhala Nórdica. De dentro dele surgiram onze criaturas mortais de tempos imemoriais.
SEXTO ATO
O primeiro fantasma a sair do portal da Valhala foi o XING TIAN. Chegou saltitante com sua forma horrenda, com seu dorso sem cabeça e seus olhos na barriga e sua boca no lugar do umbigo. Ele dançou e pulou desavergonhadamente. O segundo a aparecer foi o NEFILIM: gigante lendário, robusto, bravo e violento que brotou gritando e sacudindo as terras e as lápides a sua frente, mas parou em frente do sinal da foice de Dona Morte.
Após o gigante, apareceu a terceira criatura fenomenal. Nada mais do que o terrível RAVANA, o rei dos Rakshasa. Uma entidade com a forma de animal, com dez rostos, dezenas de armas e excepcional astúcia. Tranquilo o bicho andou e parou em seu lugar determinado. Já o maléfico HUNDUM foi o quarto ente sobrenatural a surgir no portal. Um animal rastejante, quase humanoide e sem boca, olhos e nariz. Ultrapassou o portal mágico aos gritos e berros. Rastejou ao redor do sarcófago sagrado.
A quinta anomalia era estonteante. VETALA deu a ar graça. Figura negra com três olhos e uma língua gigantesca que saia pela sua boca cheia de fogo. Cuspiu uma saliva fedorenta e venenosa por todos os lados. AZI DAHAKA foi a sexta forma monstruosa a aparecer. Um colossal dragão com seis olhos, três cabeças e três bocas distribuídas desigualmente pelo corpo. Cuspia fogo, venenos e centenas de vírus de doenças mortais e terríveis. Quase ao lado do dragão veio um pequeno DJINNI. Era o sétimo convidado. De corpo fantasmagórico, ele era parecido com um gênio da lâmpada: pequenino, feio, traiçoeiro e fanfarrão, feito de chama e fumaça.
PRETA foi o oitavo assombro. Corpo muito magro, esquelético e raquítico. Boca minúscula e um pescoço muito fino. Tinha uma fome insaciável. Gritou, berrou e comeu excrementos humanos. Depois, mais calma, sentou-se no seu lugar na reunião. APOLLYON foi o nono convocado. Um ser diabólico com asas monstruosas. Seu corpo era todo rodeado por vermes e gafanhotos que atacavam de forma mortal.
PISHACHA foi o nono. Tinha uma pele escura, com veias protuberantes por todo o corpo e olhos vermelhos. Um demônio que comia carne humana de vivos, mas também, a carne podre de mortos. Por fim, apareceu o décimo primeiro. Era um terrível e amaldiçoado monstro. Uma gigantesca víbora com corpo todo coberto de asas cadavéricas e cabeças de dragão. Era o TIFON.
SÉTIMO ATO
O senhor Tiburcindio entrou em seu apartamento. Estava extasiado. Por isso, sentou-se na cama, guardou o binóculo e ficou parado por minutos, pensativo. Sua amada filha Tatiana ainda não tinha aparecido naquela noite. Aliás, em nenhuma noite desde sua trágica morte há trinta anos. Manusear aquele brinquedo de observação que a menina usava na infância não estava adiantando muito. Ele pensou em desistir. Não! Não desistiu. Voltou para a varanda com o binóculo já em punho. Seus cabelos bruxuleavam ao vento, arrepiados, como finos arames destorcidos.
Em tempo observou outro fato detestável. De um lado os engodados sobrenaturais se ajeitavam em torno do sarcófago. Do outro o exército das Bestas Serviçais começou a profanar os diversos túmulos do cemitério. Traziam as comidas: restos corporais dos mortos e suas almas penadas. Na mesa principal a Dona Morte e seus onze convidados abocanhavam as carnes em putrefação e sugavam os espíritos vagantes.
Eram doze seres fantasmagóricos que brindavam, bebiam e comiam numa festa diabólica.
OITAVO ATO
Descargas elétricas fustigavam a atmosfera. Relâmpagos múltiplos acoitavam o topo das árvores. Tronco pegavam fogo e viravam cinzas instantaneamente.
Mas, de súbito, a mesa da funesta comilança estancou. Tremeu. Sacudiu. Dona Morte e seus ilustres olharam-se assustados. De dentro do Portal Valhala, ainda aberto, saiu outra forma. Primeiro apareceu uma luz avermelhada como um fogo de lava de vulcão. Depois uma massa informe emergiu das profundezas do portal. Transformou-se num enorme corpo de homem com mais de dois metros de altura, com um rabo de quase um metro de comprimento, dois abissais chifres na cabeça e asas cálidas. A entidade de cor rubra ajoelhou-se bufando no meio do círculo das ancestrais almas. O ser infernal veio tirar sua satisfação. Era a décima terceira figura maléfica: LÚCIFER. Ele não tinha sido convidado para a festa.
NONO ATO
Senhor Tiburcindio viu incrédulo aquela figura satânica andando lentamente em direção a Dona Morte. O chifrudo apontou seu dedo em direção a sua adversária. Em seguida abriu os braços para os céus. Lá, de perto das nuvens saiam raios tenebrosos que trovejavam como vozes divinas. Mas NEFELIN interrompeu Lúcifer e seu ataque fatal.
Iniciou-se uma luta. Pelo chão levantavam a areia e no ar nuvens e fumaças. Pontapés foram dados. Rosnadas e uivos também. Tapas, socos e sopapos. Sons de uma briga encardida, igual rinha de galo. Mas o enorme monstro não foi páreo para o poder infernal do maior dos demônios. Lúcifer usou seu rabo e enrolou seu oponente, depois o furou com seus chifres e o esmagou com seu enorme peso. O gigante desapareceu e os outros dez seres sobrenaturais restantes se levantaram indignados. Pareciam que todos, ao mesmo tempo, atacariam o maldito cramunhão.
Mas para o desígnio final daquela noite realizar-se, a Dona Morte então resolveu interferir. Ela fez um sinal com os olhos e levantou a foice que brilhou como uma luz incandescente. Os monstros se afastaram. Dona Morte deslizou vagarosa em direção ao chifrudo fedorento e pôs as mãos em sua cabeça. A criatura infernal se levantou e ficou em pé na tampa do sarcófago sendo observado pelos outros convidados. Os dois começaram então a se abraçar no círculo central. Flutuando, eles se moviam de um lado para o outro num ritmo saliente: era a morte dançando um tango com o diabo.
No fim, Lúcifer foi convidado a ficar na festa. O grande demônio convocou seus confrades e eles foram bem recebidos: uma multidão de vampiros odiosos, lobisomens famintos e bruxas medonhas saíram de dentro do portal Valhala. Sentaram-se à mesa e todos soltaram urras e uivos bizarros.
Nesse momento, as Bestais Serviçais começaram a conspurcar diferentes caixões. Centenas de corpos em putrefação, ossos em decomposição e almas penadas violadas, sugadas, festejadas e trucidadas. Num instante, todos aqueles seres imundos dançavam e pulavam como loucos em cima das criptas, dos túmulos e das lápides. Alguns em posições muito estranhas e sensuais. Outros descaradamente praticavam devassidões. Todo o cemitério era agora um imenso festival de zombarias, profanação e sexo.
DÉCIMO ATO
O senhor Tiburcindio tinha em seus olhos uma esperança dilacerada. Pobres almas nas mãos dos imundos. Pobre de minha filhinha enterrada numa daquelas covas. O velho entrou e se sentou no sofá da sala. Até pensou em chamar a polícia, mas quem acreditaria nele, numa madrugada de sexta-feira treze?
Foi então que o senhor Tiburcindio pegou um pacote de dentro do armário que ficava embaixo da televisão. Dentro dele havia um pequeno pano lilás, repleto de ervas, conchinhas, miçangas, sementes e talismãs. Era o seu Patuá. O velho segurou seu amuleto bravamente entre as mãos. Rezou baixinho. Pediu ajuda. Depois chorou.
Minutos mais tarde voltou a observar o campo-santo. Mas, para a sua surpresa, o festival macabro, com seus gritos, urros e assovios havia cessado. Os seres malignos que faziam a festa sombria agora se concentravam perto da entrada do cemitério. Estavam parados em posição de combate.
DÉCIMO PRIMEIRO ATO
Foi então que, da porta de pedra do cemitério, apareceu um QUERUBIM. Um lindo anjo com asas brancas, com corpo pequenino, barrigudinho e cara de bebê. Entrou no lugar soprando uma flauta doce. Atrás dele, vários anjinhos, cinco, dez, vinte, trinta, centenas deles, sobrevoaram os vultos e os seus chefes imorais. Os imundos estavam paralisados. Mas os anjinhos não estavam abandonados. Outros chegaram para ajudar.
Primeiro vieram os ESPÍRITOS ILUMINADOS. Seres angelicais e sem asas que pareciam humanoides com a diferença que possuíam uma áurea branca. Eram espíritos de luz que ajudavam as almas dos mortos profanados pelas Bestas Serviçais. Assim, uma a uma, aquelas almas foram encaminhadas e voltaram em paz para suas respectivas tumbas.
Depois, adentraram ao recinto, os SANTOS. Entidades de uma luz intensa e forte: São Jorge em seu cavalo; São Pedro; São Sebastião; São Lázaro; São Benedito e seus cachorros; São Expedito, São Judas Tadeu; Santa Bárbara, São Cristóvão e vários outros infinitamente.
Por fim, chegaram os ORIXÁS. Surgiram os ciganos do oriente, os pretos velhos da rua, os deuses africanos. Ogum, Oxóssi, Exu, Logunedé, Xangô, Oxalá, Obaluaiyê, Oxumaré, Oxum, Iemanjá, Nanã, Ibeji, Omolu, Iansã. Eparrêi!
Todos esses seres chegaram com suas forças benéficas e ajudaram os anjinhos reforçando sua batalha contra os seres imundos. Por outro lado, as entidades do mal deixaram a paralisia e começaram a atacar as criaturas do bem.
A guerra começou.
DÉCIMO SEGUNDO ATO
O cemitério virou uma verdadeira batalha fantasmagórica com forças diversas. Fogo, vento, água, terra e ar. O lugar parecia estar vivo e balançava intensamente. Explodiam criptas, túmulos e as lápides que zuniam em cores multiformes. Muros e pedras espatifavam-se e as árvores se soltaram do chão. Pareciam bailar uma dança bestial. Raízes voaram aos céus junto com as folhas, as plantas e a terra: tudo explodiu num enorme furacão de centelhas caleidoscópicas.
Nesse momento chegou das profundezas uma série de reforços. Centenas de seres inomináveis, grotescos, sofríveis e desgraçados avigoraram os exércitos do mal. Mas os céus mandaram contribuições também. Milhares de seres de luz, elevados, esclarecidos, alegres e bondosos abordaram para deter a praga mundana.
A batalha duraria um século.
Foi quando um raio de cor lilás, branco e azulado, vindo dos céus, separou bons de ruins. O terremoto parou e a guerra findou. De dentro da luz saiu um espírito em forma de mulher que trazia uma criança em seus braços. Ela possuía uma áurea branca e transparente que iluminou todo o cemitério e as ruas adjacentes.
Todos, maus e bons, pararam e escutaram com atenção o que àquela santa senhora declamava. De repente urros e assobios do lado maléfico. Um novo silêncio. São Jorge pediu a palavra. Disse algumas frases ao espírito da mulher e recebeu dela um não com o dedo indicador da mão. Resignados os seres do bem fizeram uma fileira e sumiram. A mulher e a criança desapareceram.
Os seres maléficos saíram pelo portão de entrada do cemitério. Voavam, saltitavam e caminhavam aos gritos, berros e uivos. Estavam livres. Espalharam-se por todos os becos e vielas das cidades do mundo. Afinal, era o dia deles. Era sexta-feira treze.
Nesse dia, eles tinham esse direito e esse livre arbítrio. Era um tipo de concordata de tempos remotos. Um acordo esquecido nas memórias de todas as pessoas. Uma permissão divina, que concedia a eles, pelo menos, numa ocasião, a pura liberdade. Nesse dia, então, os malvados podiam cometer seus crimes, assustar as pessoas, povoar as ruas e as casas. Sequestrar as almas dos mortos. Assombrar os vivos.
DÉCIMO TERCEIRO ATO
O senhor Tiburcindio saiu da varanda espantado. Não houve sucesso. Sua amada Tatiana, filha desencarnada, não veio se comunicar naquele dia. Ele estava fustigado, magoado e amedrontado. Foi em direção ao seu quarto. Precisava dormir.
Ao chegar no quarto, o senhor Tiburcindio guardou aquele binóculo antigo e infantil. Deitou-se na cama e levou consigo o seu Patuá. Por segurança envolveu no pescoço um cordão cheio de alho e pé de coelho.
Entretanto, o velho demorou a pegar no sono naquela madrugada. E quando estava quase dormindo escutou um barulho na varanda. Viu uma sombra aproximar-se do vidro. Observou que eram dois grandes olhos vermelhos.
Eram as Bestas Serviçais!
Um frígido intenso perpassou pelo seu senil corpo. Agora eram quatro, seis, dez, treze olhos vermelhos farejando o vidro. Senhor Tiburcindio não conseguia se mexer.
A porta da varanda se abriu.
Os monstros entraram no quarto e rodearam a cama. Estavam sedentos de raiva e fome. O senhor Tiburcindio fechou os olhos. Esperou a extinção. Ele percebeu que jamais encontraria sua filha, pois iria para o inferno e não para o céu.
Infelizmente ele era mais uma vítima da noite da sexta-feira treze.
O jantar de um infausto banquete das almas.
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Conto que faz parte da antologia SEXTA-FEIRA 13: Antologia de Contos Assombrosos - Editora EuEdito (Portugal) - 2017.